13 LIVROS SOBRE OBSESSÃO



[por Airton Uchoa Neto]

Boa parte dos escritores são conhecidos por suas obsessões dentro ou fora da literatura – Nelson Rodrigues, por exemplo, gostava de ser chamado de “Flor de Obsessão. Na literatura se chamam obsessões as repetições de um mesmo tema ou aspectos na obra de um autor. O professor Batista de Lima conta que a obsessão de Moreira Campos eram os dedos. As referências a dedos se repetem mais de oitenta vezes na obra do contista. E quanto a própria obsessão é o tema do romance? Temos uma pequena lista com dez narrativas surpreendentes sobre o tema.



Moby Dick, de Herman Melville (1851). A obsessão, denunciada já na estrutura do romance, na longa jornada que constitui a narrativa, começa no número de epígrafes. As referências à baleia, sobretudo e especificamente ao cachalote, a espécie a que pertence Moby Dick, são inúmeras. O autor busca essas referências desde as citações bíblicas – o Leviatã de que fala Isaías – vindo até a modernidade, além de listar a palavra baleia em diversos idiomas. Na narrativa, contada na verdade por um outro personagem (para tornar o verdadeiro personagem principal ainda mais misterioso, por não mostrar um ponto de vista direto), o capitão Ahab busca o cachalote que lhe arrancou a perna para se vingar. Isso significa naturalmente se confrontar com uma criatura gigantesca e irracional, o que pode servir como ampla metáfora. Moby Dick é hoje o romance mais conhecido de Herman Melville, conhecido também por vários personagens de algum modo monomaníacos, como Bartleby (para muitos críticos, um dos personagens que funda a pós-modernidade). O romance, porém, permaneceu durante muitos anos pouco conhecido do grande público.

Dom Casmurro, de Machado de Assis (1900). Durante muitos anos, os leitores fiéis do bruxo do Cosme Velho se perguntavam se Capitu realmente teria traído Bentinho, e como tinha sido capaz disso. A narrativa em primeira pessoa parte da voz do próprio Bento Santiago, quando já viúvo, tentando reconstruir os estilhaços das suas memórias de infância a partir da reconstrução de uma réplica de sua própria casa à época. O foco central da discussão tendia a ser esse: a “culpa” ou “inocência” de Capitu. Isso até que os críticos Helen Caldwell, John Gledson e, sintetizando os dois primeiros, Roberto Schwartz começaram a questionar esse ponto central. A infidelidade feminina em si foi um tema bastante comum na literatura do século XIX (já que o próprio casamento era um dos pilares máximos da burguesa nascente), vide, por exemplo, Madame Bovary, O primo Basílio e Ana Kariênina, só para citar os exemplos mais óbvios. Schwartz (no primeiro ensaio de Duas meninas) expõe as características do narrador para que se perceba o jogo de Machado de Assis: o narrador não é confiável, mas ganha o leitor para a sua visão deturpada dos fatos por causa da sua cultura e classe social elevada. Bento Santiago, o narrador, é movido por uma obsessão da qual Capitu é a maior e mais óbvia vítima. Trata-se de um romance bem conhecido do público brasileiro, mesmo de quem ainda não o leu. Essa nova visão crítica ajuda a tornar o livro, ainda uma vez mais, inédito.

O coração das trevas, de Joseph Conrad (1902). A missão de resgatar o coronel Kurtz no coração da África, na voz de um velho marinheiro que deseja matar o tempo, passa aos poucos de uma empreitada sacrificante e perigosa a uma missão completamente insana. O encarregado de buscar o estranho e fabuloso homem que se perdera busca sua presença física para que a mesma confirme os relatos da grandiosidade de Kurtz, chegando insanamente a imaginar o homem desconhecido mais propriamente como voz do que como ser humano em carne e osso. Em 1979, Francis Ford Coppola fez uma versão alternativa da narrativa: Kurtz é um militar americano que precisa ser trazido de volta de uma aldeia no Vietnam. O filme é o clássico Apocalipse Now.

Os duelistas, de Joseph Conrad (1908). Os tenentes franceses D’Hubert e Féraud, durante as campanhas napoleônicas, entram em conflito quando ainda jovens. Féraud só enxerga uma possibilidade para que a questão seja resolvida: o duelo. D’Hubert, sabendo que os tempos eram outros e, sobretudo, que não há uma razão lógica para o ódio de Féraud, nascido de um mal-entendido tolo e da vaidade cega, tenta se negar ao máximo, mas em vão. Os dois então começam uma sequência de duelos sem conclusão que acompanha a carreira militar de ambos e chega a permanecer mesmo depois da derrota de Napoleão. Ridley Scott adaptou a narrativa para o cinema em 1977.

Morte em Veneza, de Thomas Mann (1912). A novela narra a obsessão veladamente sexual de Gustav Von Aschenbach, escritor de cinquenta anos, por um belo jovem chamado Tadzio, durante uma viagem a Veneza. Devido aos pudores da época, a atração sexual de um homem maduro por um adolescente tinha que ser transformada numa admiração estética obsessiva, mas o desejo entrelinhas torna a narrativa ainda mais sufocante. Em 1971, Luchino Visconti adapta a narrativa para o cinema.

Abel Sánches, de Miguel de Unamumo (1917). Abel Sánches e Joaquín Monegro são criados como irmãos desde a tenra idade. Mas, a partir da escola, Abel se mostra mais desenvolto, mais cativante aos olhos dos demais, enquanto Monegro se revela um sujeito de caráter taciturno. Quando Monegro se apaixona por Helena, pede a Abel, que iniciava seus estudos de pintura, que pinte seu quadro. O resultado é que Helena e Abel acabam se apaixonando e se casando. Joaquín Monegro mentaliza que esse e todos os atos da vida de Abel são voltados diretamente contra ele e esse é o cerne da narrativa. A estrutura é permeada de diálogos rápidos em terceira pessoa revezada com as observações cruéis que Joaquín escreve no seu diário. O paralelo entre a história de Caim e Abel é claro quase desde o início. Uma observação pessoal: o livro tem pouco mais de duzentas páginas. Li em três horas. Estava obcecado para saber o final.

Xadrez, de Stefan Zweig (1944). Zweig se suicidou em 1942 e deixou os originais dessa que seria sua última narrativa. O famoso escritor austríaco, conhecido mundialmente, se exilara no Brasil fugindo do nazismo e da guerra, e se instalou na bucólica Petrópolis, no Rio de Janeiro. Zweig se suicidou logo depois de uma embarcação brasileira ser afundada por um ataque alemão à nossa costa. A guerra de que Zweig fugia tinha chegado aqui. Zweig era conhecido por adotar o suicídio do personagem principal como solução para as suas narrativas e acabou adotando essa solução para a narrativa de sua própria vida. “Xadrez”? Uma obsessão para além do próprio jogo: narra o embate, durante uma viagem de navio, entre o famoso enxadrista Czentovic e o misterioso Dr. B. A história pregressa dos dois é contada ao longo da narrativa. Ao contrário da maioria dos jogadores profissionais de xadrez, Czentovic foi considerado praticamente um débil mental até que o seu talento foi descoberto numa pequena aldeia isolada, desde então o rapaz se tornou um enxadrista rico e famoso, mas obsecado apenas pela sua riqueza e fortuna, e curiosamente incapaz de imaginar uma partida de xadrez, ou seja, ao contrário do comum entre os grandes profissionais, Czentovic só conseguia jogar tendo o tabuleiro diante dos olhos. Já o Dr. B se aprofundara nos mistérios do xadrez de uma forma traumática: preso pelos nazistas, fora condenado à tortura psicológica, condenado a ficar preso num quarto todo branco, sem nada que pudesse ler nem nada em que ou com que pudesse escrever. Até o dia em que consegue roubar um livro de xadrez de um militar distraído. O Dr. B lê, relê, decora o livro, reconstrói mentalmente as jogadas e começa a construir jogos inéditos a partir de um método tortuoso: joga contra si mesmo, mas como se não soubesse as jogadas que viriam depois do seu “adversário”. O embate final entre Czentovic e o Dr. B se encerra de forma surpreendente. No vídeo abaixo, o grande jornalista Alberto Dines, biógrafo de Stefan Zweig, dá sua interpretação genial sobre a narrativa.


Doutor Fausto, de Thomas Mann (1947). O mito do Fausto, incluindo naturalmente o famoso pacto, é retomado na biografia do músico Adrian Leverkühn e sua obsessão pela obra-prima musical (e de certo modo, em outro plano, temos a obsessão fanática do narrador, o professor Zeitbloom, pelo personagem narrado). O pano de fundo é o nazismo em ascensão. A trajetória intelectual dos personagens é contada ao longo de mais de setecentas páginas que reveem criticamente conceitos básicos e lapidares da cultura ocidental.

Lolita, de Vladimir Nabokov (1955). O romance narra a obsessão do intelectual europeu autoexilado nos Estados Unidos Humbert Humbert (quase todos os nomes dos personagens do romance são sonoramente redundantes) pela jovem Dolores Raze, sua enteada. Na verdade, sua obsessão louca por jovens meninas começa bem antes, e sua explicação foge aos padrões convencionais (Nabokov era extremamente desconfiado em relação à psicanálise). O romance foi considerado pornográfico e, apesar do interesse dos editores, demorou a encontrar uma editora (foi publicado semiclandestinamente pela Olympia Press, editora francesa que publicava livros em inglês para serem contrabandeados para os Estados Unidos). Já com a edição legalizada, o romance ganhou duas adaptações para o cinema, a de Stanley Kubrick, de 1962, que deixou o autor extremamente incomodado por não obedecer à narrativa original, e a de Adrian Lyne, de 1997, que é subservientemente fiel ao livro, mas visivelmente inferior em termos de cinema.

O ciúme, de Alain Robbe-Grillet (1957). Não é possível traduzir perfeitamente o título desse curto romance experimental. Jalousi significa ao mesmo tempo ciúme e persiana, em português. A persiana é o ponto de vista do narrador, que descreve repetidamente, com poucos detalhes destoantes, a mesma cena repetidamente, e nunca se refere a si mesmo como um “eu”, mas sempre na terceira pessoa. A extrema objetivação das cenas, além das constantes repetições, torna o livro claustrofóbico e angustiante. Impossível parar de ler.

Todos os nomes, de José Saramago (1997). Entre o primeiro romance de Saramago, Terra do pecado (1947) e o segundo, Manual de pintura e caligrafia (1977), se passam trinta anos. A partir daí a produção literária de Saramago se torna constante. Em Todos os nomes, o autor opera uma genial inversão do romance O processo, de Kafka: enquanto em Kafka um homem busca a origem documental da acusação que lhe imputam e da qual não consegue se defender por nem sequer saber qual é, no romance de Saramago o funcionário da Conservatória, espécie de depósito burocrático e cartório, se apaixona pelo nome de uma mulher e, a partir apenas desse nome destacado por acaso dos demais, passa a buscar obsessivamente a mulher real. Um romance sobre a solidão e o desespero que ela pode causar.

O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli (2002). Lourenço, dono de uma loja de penhores têm várias obsessões implícitas e interligadas: o controle sobre os seus clientes e suas vidas e suas próprias obsessões sexuais – bem insinuadas a partir do próprio título do romance. O romance foi adaptado para o cinema por Heitor Dhalia em 2007, com Selton Melo no papel principal e o próprio Mutarelli fazendo uma ponta como o segurança da loja. De todas as obras aqui listadas, talvez seja, na minha opinião, a que mais sofreria com comentários da minha parte, quero dizer, é narrativa que mais correria o risco de ser estragada se suas surpresas fossem reveladas (perceba-se que, quando se trata de obsessão, as narrativas tendem a se repetir a partir de um mesmo eixo, e ainda assim chamam prendem bastante a atenção quando bem realizadas). Atente-se, porém, para a própria função simbólica do ralo ao longo da narrativa.

O homem duplicado, José Saramago (2002). Um professor de história que pouco se distrai um dia se torna obsecado por um ator apenas pelo fato de ser extremamente parecido com ele próprio, ou melhor, por ser mesmo um sósia seu. O professor resolve encontrar o ator. Bem, essa narrativa também sofreria muito com qualquer tipo de comentário. O romance é cheio de surpresas e reviravoltas (de um tipo até um pouco raro em se tratando de uma narrativa de Saramago). O romance foi adaptado para o cinema em 2013 por Denis Villeneuve.

Trata-se de uma lista pessoal – o leitor fique à vontade para incluir nos comentários os livros que achar que poderiam fazer parte dessa lista. É claro que não esgota todos os livros que tangem o assunto quando se trata de obsessão (perceba-se, também, que os livros vão além da questão das obsessões e abordam outros aspectos). Dois autores têm mais de um livro citado inclusive. Bem, eu, como escritor, também tenho direito a obsessões, ou não?

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