Hunter S. Thompson (1937-2005) é, provavelmente, uma das mais agressivas figuras da chamada contracultura estadunidense e mundial e, reconhecidamente, uma dos mais importantes e controvertidos personagens/narradores do chamado new journalism. Seu romance/reportagem de estreia, Hell's Angels, de 1966, é um marco. Para falando sobre a temida gangue de motoqueiros, o autor teve que conviver com eles durante um bom tempo e disso resultou um relato sem meias palavras e muito ligado a toda situação sociocultural e política ao redor. Um outro livro do autor, Medo e delírio em Las Vegas, originalmente uma série jornalística publicada pela Rolling Stone, em 1971, acabaria adaptado para as telas, em 1998, por nada menos que Terry Gilliam (o mesmo diretor de Os doze macacos, Brazil: o filme, As aventuras do Barão de Munchausen e outros), com Johnny Depp e Benicio del Toro nos papéis principais. A vida de Thompson já tinha sido mais ou menos adaptada, mas de forma algo próximo da idealização: Where the Buffalo Roam, de 1980, dirigido por Art Linson, traz Bill Murray no papel principal, mas insiste um pouco na tecla de Thompson como paladino da justiça e defensor de pobres junkies brancos. Depp, amigo pessoal de Thompson, que pagou o curioso ritual de seu enterro (as cinzas de Thompson foram arremessadas por uma catapulta em forma de botão de peiote, ao som de "Mr. Tambourine man", de Bob Dylan), ainda viveria mais uma vez o alter-ego do autor: isso aconteceu na adaptação do romance Rum: memórias de um jornalista bêbado (como as duas obras de Thompson citadas antes, lançado no Brasil originalmente pela Conrad e reeditado pela L&PM
Pocket). O romance foi escrito em 1960, mas publicado apenas em 1998, por receio do autor. O estilo do romance é diferente do fluxo furioso que seria conhecido como o estilo de Thompson, que, na época, ainda estava muito influenciado por autores como Hemingway e Scott Fitzgerald (dos quais chegava a redatilografar romances inteiros para saber qual era a sensação de ter escrito alguns dos seus livros preferidos). O romance, que se passa em Porto Rico, em muito lembra o clima de O sol também se levanta, de Hemingway: o mesmo desespero alcoólico, a mesma alegria desesperada, que acabam degringolando em desilusão. Na adaptação dirigida por Bruce Robinson, o desespero e a desilusão são transformados numa estranha forma de esperança na conclusão (é muito estranho, mas necessário, analisar uma narrativa sem contá-la inteira, mas - vamos lá). Na verdade, o que me interessa analisar nem é mesmo a história do jornalista estadunidense perdido num paraíso tropical explorado de forma predatória por turistas. Quero dizer - seria injusto reclamar de um filme porque não foi fiel à narrativa original que ele pretende adaptar. A narrativa, ou pelo menos boa parte dela, está bem conservada. Apesar do romance adocicado entre o protagonista e a excêntrica e perdida Chenalt (Amber Heard) e da conclusão sonhadora. A traição ao pensamento do original do autor do livro deu ao filme um adocicado enjoento que poderia ter sido evitado, um pequeno detalhe que acabou arruinando um filme que, apesar de boas cenas (e da atuação de Depp, que já conhecia bem o personagem, e da segurança de Michael Rispoli e de Giovanni Ribisi, que vivem os dois jornalistas fracassados com quem Paul Kemp/Thompson divide o apartamente), peca por um ritmo algo burocrático. Thompson merecia mais.