Sombras e Assombrações

 Wagner Williams Ávlis*

    Sinopse                                              
“Batman Encontra o Doutor Morte”/“O Retorno do Doutor Morte”. Detective Comics #29 e 30 (julho-agosto, 1939). Roteiro de Gardner Fox, arte de Bob Kane. Crônicas vol. I. As Primeiras Histórias de Batman em Ordem Cronológica. Ed. Panini, 2007, pp.19-30.
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O doutor em Química, Karl Hellfern, descobriu como sintetizar uma enzima de pólen num gás venenoso, produzindo-o em larga escala, pretendendo com isso ameaçar com extorsão cada membro da alta sociedade de Gotham City. Sabendo dos boatos das rondas de um vigilante noturno – visto como um potencial obstáculo contra a extorsão –, o químico arma uma emboscada em forma de desafio investigativo para o Homem-Morcego, com o intuito de mandar assassiná-lo. Após seu primeiro encontro com Batman, o dr. Karl Hellfern, Doutor Morte, faz mais uma vítima do gás de pólen, dessa vez um falido da Grande Depressão, que deixou suas joias sob custódia de uma velha viúva. Batman terá de correr contra o tempo para proteger a viúva, evitar o saque, desbaratar a quadrilha do Doutor Morte e sobrepujá-lo antes que siga com seu plano letal.
    Análise
“Ciência não é o mesmo que cientificismo, a crença de que a ciência, por si só, é capaz, em princípio, de proporcionar uma adequada compreensão da totalidade do real” (John F. Haught – teólogo norte-americano)[1].


Ainda quando o fazer científico não era um corpo organizado de saberes já existia a sombria figura do “cientista louco”, em um arco que se estendia desde experimentações estrambóticas às atrocidades do gênio do mal. Personalidades como magos, bruxas, alquimistas, astrólogos obcecados pelo domínio das forças ocultas, do elixir da imortalidade, da pedra filosofal, da transmutação do ouro, foram capazes das mais bizarras experiências para alcançar seus objetivos numa época que ética e cientificidade nem sonhavam andar juntas; o vaticínio, o sacrifício humano, a tonsura, o homunculus[2] são alguns dos mais comuns exemplos dessa época. Contradizendo o historiador francês Hippolyte Taine (1828-1893), para o qual a história e o homem têm de ser compreendidos à luz de três fatores determinantes, meio-ambiente, raça e momento histórico, nem toda época possui seu próprio espírito; há espíritos de época que perseguem todas as épocas, todos os meios, todas as etnias, e a ciência como um ídolo cego, senhora de tudo, muitas vezes geradora dos gênios do mal, é um desses espíritos, que, inclusive, agora mesmo, ronda nosso século.

Os contos da Detective Comics #29-30 vêm criticar esse espírito das épocas – em outros termos, a figura do cientista louco, inescrupuloso por fazer ciência sem ética, para usá-la a serviço das suas ambições – sob a simbologia dos desenhos em quadrinhos. Não é, ressalte-se, um feito inovador do roteirista Gardner Fox; no ano de 1939, tempo desses quadrinhos, já se havia uma longa tradição literária e cinematográfica acerca do assunto: Dr. Victor Frankenstein, de Mary Shelley (1818), “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde” (“O Médico e O Monstro”, 1886), de Robert Louis Stevenson, Dr. Moreau (de “A Ilha do Doutor Moreau”, 1896), de H.G. Wells, Dr. Herbert West (de “O Reanimador”, 1922), de H.P. Lovecraft, romances góticos de horror     que encontraram adaptações no cinema e que continham a mesma crítica, a ciência como instrumento do hediondo. O bat-roteirista Gardner Fox, seguindo o mesmo percurso, traz esse assunto para as histórias em quadrinhos de super-heróis, concebendo assim o segundo vilão cientista louco do segmento, o dr. Karl Hellfern – Doutor Morte[3].

No conto, se o dr. Karl Hellfern ilustra o espírito de uma ciência maligna, para contrabalançá-lo, Batman é descrito como uma sombra estranha:

“Uma estranha sombra corre pela noite” (p.22).
“Um minuto mais tarde, uma estranha criatura das sombras aparece no telhado do edifício ao lado da loja de antiguidades” (p.39).

Algumas quadrículas com Batman como sendo uma sombra ambulante. Na última de baixo, da sombra morcegoide uma corda é disparada no espaço vazio para acertar o pescoço de um capanga.

 Então, reduzindo a estrutura do enredo aos personagens, temos o esquema «espírito vs. sombra». A ideia de espírito evoca a noção do sobrenatural; a ideia de sombra evoca a noção do natural, porém ambas presentes e assombrosas. Devido à sua estrutura posta sobre a noção de “espírito”, o cientista louco, dr. Karl Hellfern, tem por nome “Doutor Morte”, será tido por morto no final (no caso, Batman vê o doutor ser carbonizado dentro do laboratório com a combustão que o doutor mesmo causou), mas retorna intrigantemente no conto seguinte, apenas com o rosto deformado, como que uma assombração imorredoura, tornando-se com isso o primeiro vilão recorrente do Homem-Morcego. Na contraparte, devido à sua estrutura posta sobre a noção de “sombra”, o Vigilante de Gotham é desenhado por Bob Kane em belas quadrículas que sugerem estar ele à espreita, rondando à surdina e à socapa, deambulando ou atravessando altas estruturas rígidas (como beirais, vigas, paredes, muralhas, telhados, vitrais, janelas, claraboias), porém, devido à noção de “natural” – que toda sombra é –, Batman pode se ferir, sendo atingido, pelas costas, por um disparo de revólver do capanga indiano Jabbah, na articulação do ombro esquerdo (p.25). Foi a 1ª vez que os leitores o viram se machucar grave, desfazendo um tira-teima até ali persistente: Batman não era um ser com superpoderes, imune ou de natureza paranormal; era, de fato, somente um homem vestido numa fantasia de morcego[4].

Momento dramático do ferimento à bala: "somente um homem mortal vestido numa fantasia de morcego".

Os conceitos e elementos estruturais do autor Bill Finger, trabalhados na edição anterior [Detective Comics #28], são mantidos por Gardner Fox, para, desse modo, ir fixando o cânon do super-herói; as performances acrobáticas, as poses quirópteras, os enquadramentos com a lua cheia ao fundo, tudo realça a ideia de Batman como um morcego humano, recurso de maior esforço das esquipes criativas de Bob Kane. Nos dois contos em apreço, esses elementos estão assim distribuídos:

Enquadramento
Quantidade
Enquadramentos com a lua cheia ao fundo dos cenários
20
Enquadramentos quirópteros (Batman como um morcego)
16
Enquadramentos de Batman como uma sombra ambulante
6

Saltos, dependuramentos, acrobacias, piruetas, escalagens, o comportamento característico de Batman como um morcego humano, presente também nessas duas edições.
Na oposição do esquema «espírito vs. sombra», bolada por Gardner Fox em “Batman Encontra o Doutor Morte”/“O Retorno do Doutor Morte”, há ainda uma criativa oposição menor como sendo um subconjunto da oposição maior, a “suboposição das armas”. Doutor Morte quer levar adiante seu plano de extorsão dos ricos gotamitas sob a ameaça de uma enzima extraída do pólen sintetizada letalmente em um gás venenoso. Contra esse gás se inauguram as hoje famosas cápsulas de gás do cinto de utilidades. Doutor Morte, ainda por força do esquema «espírito vs. sombra» – sendo ele o espírito –, atua somente nos bastidores da trama, às escondidas, e nos lugares altos (o 2º andar da sua mansão, onde fica seu laboratório e no último andar de um prédio-dormitório). Para atuar, ele dispõe de capangas multiétnicos, desde gângsteres italianos a seus assistentes pessoais, o indiano Jabbah e o russo cossaco Mikhail, esses dois, homenzarrões fortes próximos a 2m de altura. Contra esses altos esconderijos do Doutor Morte, surgem as ventosas de sucção que o Homem-Morcego usa para escalar paredes. Logo, a suboposição do enredo fica assim:

Oposição das armas e apetrechos
Doutor Morte
Batman
Gás de pólen
Cápsulas de gás
Esconderijos altos
Ventosas de sucção escalar

Ventosas de sucção escalar, mais um apetrecho que se junta à batcorda e às cápsulas de gás.

Batman é ainda um justiceiro, pouco se importando com as consequências do seu ímpeto contra o crime. Nessas edições ele comete 3 homicídios:
contra o indiano Jabbah com um solavanco no pescoço, pelas costas (como vingança pelo tiro que recebeu pelas costas do mesmo indiano), com a batcorda.
contra o dr. Karl Hellfern (o Doutor Morte) ao negligenciar socorro enquanto o testemunhava ser carbonizado no laboratório (depois fora revelado que ele não morrera);
contra o russo cossaco Mikhail com uma voadora no lobo temporal, que fratura seu pescoço.

A inesperada voadora mortal contra o cossaco Mikhail. Na Era de Ouro (1938-1954) Batman não tinha o rígido código de conduta que tem hoje, não hesitando, algumas vezes e quando julgava necessário, tirar vidas dos sequazes.
A luta final entre o detetive e o cientista, na qual o dr. Karl Hellfern não tem chance alguma de vitória, tem um desfecho cheio de polissemia[5] com o termo “morte”. Na edição nº 29, aos risos e às chamas, o cientista louco some nas labaredas e por elas é silenciado; Batman diz em pensamento:
“Morte... ao Doutor Morte!”.

Na edição nº 30, Batman percebeu que o Doutor Morte não tinha morrido, estava disfarçado de um velho ourives por nome “Ivan Herd”, e ao desmascará-lo, pôde fitar seu rosto...  uma aparência esquelética, mórbida, como dizem ter os espíritos do mal que assombram os bons corações. Com tal desfecho, um gancho polissêmico é acoplado ao Doutor Morte, o de que ele mesmo, que leva o nome da morte, terá de conviver com a face da morte estampada em sua cara viva, a ilustração do que compôs Cazuza, “senhoras e senhores, trago boas novas! Eu vi a cara da morte, e ela estava viva”![6]

A face mórbida do Doutor Morte, quadrícula que encerra o 2º conto entre ele e Batman.


[Conheça a  extensão  dessa crítica no artigo "Faces da Morte: sr. Karl Hellfern, o Dr. Morte". ]
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego. 



[1] HAUGHT, John F. Cristianismo e Ciência, para uma Teologia da Natureza (trad. Jonas Pereira dos Santos). “Ciência, liberdade e futuro”. São Paulo: ed. Paulinas, 2009, p.30.

[2] Vaticínio era a prática de fazer previsões (climatológicas ou paranormais) através do corte e da leitura do intestino das aves; o sacrifício humano era utilizado em diversas práticas, desde à magia à anatomia; nesse último caso, eram os indigentes enfermos as cobaias; a tonsura foi o corte ou a amputação de membros do corpo (humano e animal) para fundi-los a um corpo alheio, numa relação “aliem-portador” por meio da costura do tecido; o conceito de homúnculo (do latim, homunculus, “pequeno homem”) parece ter sido usado pela primeira vez pelo alquimista Paracelso para designar a criação de vida humana a partir de materiais inanimados. Foi baseada nos relatos de tonsura e do homúnculo que a autora inglesa Mary Shelley compôs a obra “Frankenstein” (1818).

[3] O 1º cientista louco das HQs de super-heróis foi o Ultra-Humanoide, inimigo do Superman, em Action Comics #13, junho de 1939. O 3º foi o dr. Thaddeus Bodog Sivana (Doutor Silvana), inimigo do Capitão Marvel, em Whiz Comics #02, fevereiro de 1940. O 4º foi o Dr. Hugo Strange, inimigo de Batman, em Detective Comics #36, fevereiro de 1940. O 5º foi Alexander Joseph Luthor (Lex Luthor), rival do Superman, em Action Comics #23, abril de 1940. Depois desses 5, a indústria conceberia outros mais, sempre com a mesma crítica subentendida contra a ciência antiética.

[4] O maior dos trunfos para o sucesso do personagem em menos de um ano da sua estreia. É o que a maioria dos críticos quadrinistas, como Jim Steranko, afirma. Essa fragilidade do Batman, segundo ainda Steranko, serviu como um polo complementar ao Superman, que fez sucesso bem antes disso por causa da ideia oposta: a de um além-homem invulnerável, capaz de feitos extraordinários, e, ainda por cima, não ser desse planeta. In. STERANKO, James; FELLINI, Federico. The Steranko History of Comics, vol. I. ISBN-10: 0517501880. Crown Publishing Group, 1970, p.11.

[5] Propriedade que uma mesma palavra ou um discurso tem de apresentar mais de um significado nos múltiplos contextos em que aparece.

[6] Cazuza. Ideologia. Faixa “Boa Novas” (Cazuza). Mercury Records, 1988.

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