| Wagner
Williams Ávlis*
▉ ▊ ▋ ▍ ▎Sinopse
"Blake,
o Ladrão de Joias Francês". Detective Comics #28
(junho 1939). Roteiro de Bill
Finger, arte de Bob Kane. Crônicas vol. I. As Primeiras Histórias de
Batman em Ordem Cronológica. Ed. Panini, 2007, pp.12-18.
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Uma organização
criminosa em ascensão, liderada por um estrangeiro, passa a espoliar a elite de
Gotham City com foco nas pedras preciosas. Enquanto a polícia da cidade se
esforça em investigar a máfia, o Homem-Morcego se passa pelo Comissário Gordon
para arrancar informações de um informante em condicional, e, com o intuito de
manter laços com a polícia, Batman sai numa caçada implacável contra os ladrões
de joias, um a um, só parando quando abater todos os membros, principalmente
seu líder, o francês Monsieur Blake.
▉ ▊ ▋ ▍ ▎Análise
É no contexto da Grande Depressão (1929-1945) que
se encarrilha a segunda aventura do Homem-Morcego, agora imersa no seio do
submundo. Nela, a ainda desconhecida dupla-dinâmica Bill Finger/Bob Kane vem
retratar a lição que a História não cansa de repetir; todas as crises
econômicas são precedidas de uma grave crise moral, posto que matéria e
espírito estão imbricadas, e, como num círculo vicioso, ambas ora se atraem,
ora se repelem. É isso que está subscrito na disputa de poderes entre as várias
cosa nostra[1]
em Gotham City, dentre elas a do francês Monsieur Blake, Don de um sindicato do crime em
ascensão.
Monsieur Blake é um dos muitos mafiosos
estrangeiros que (conforme relata a história dos EUA) foram buscar na próspera
América dos anos 1920 um caminho fácil de empodeiramento. O alvo da máfia de
Blake é a elite gotamita, especificamente, pedras preciosas, deixando intocável
a população pobre dos subúrbios. Nesse ponto convém analisar duas grandes
singularidades desse conto.
1.
A trama é palaciana → Isto é, passa-se nas altas esferas do high society de Gotham. Bill Finger, no desabrochar do seu engenho
artístico, fez algo digno de nota. Tomando a visualidade do esquema de pirâmide
social, o high society – a burguesia
– é o topo da pirâmide, portanto um plano
alto. Apropriando-se desse sentido de plano
alto e norteado por ele, Finger compõe uma trama onde as ações de Batman
acontecem nos lugares altos: sacadas
de prédio, claraboias, mastros, janelas dos últimos andares, arranha-céus,
dando ao leitor a primeira, melhor, verdadeira performance do que vem a ser um
personagem homem-morcego. Para tanto, estreia-se o primeiro apetrecho, a
batcorda, ainda sem o arpéu (lançador automático), por isso as panorâmicas, os
enquadramentos de saltos, planagens, dependuramentos, piruetas no ar, coisas
ausentes no conto anterior, que se passa no plano baixo, no chão. Posso dizer,
com garantia, que é somente a partir desse segundo conto, “Blake, o Ladrão de Joias Francês”, que Batman se define como uma
personalidade quiróptera, explorando as possibilidades-limites de um homem
atuar nos ares através da acrobacia, e, com isso mesmo, distinguir-se, pela sua
performance, de todos os super-heróis que vigiavam explorando o espaço aéreo[2]
na Era de Ouro (1938-1954). Detective Comics #28 é pois um conto performático,
e tal performance funciona para fazer jus literal ao nome “Bat-Man” e à imagem
notívaga que com ele se pretendia projetar.
Esquivas, saltos, dependuramentos, piruetas no ar, o Homem-Morcego enfim se mostra um personagem acrobático, performer. |
2. Desenho como reportamento → “Reportamento”
vem de “reportar”, que é referir-se, mencionar, aludir a algo ou alguém. Numa
das raras ocasiões de brilhantismo, Bob Kane imprime aqui um recurso poético no
melhor estilo easter egg (código
secreto) em repetidos enquadramentos – precisamente, 7 deles – de sua narrativa
gráfica. O objeto de seu easter egg é
a Lua na fase minguante, colorizada em amarelo por contraste com o azul soturno
da noite. Kane, que flertou com a cabala[3],
provavelmente desenhou a meia-lua 7 vezes[4]
pelo seu significado exotérico de perfeição. Foi uma forma indireta para se
dizer que, em meio à podridão do submundo criminoso de Monsieur
Blake com sua ganância por joias, a
joia mais bela, pura, sacra, auspiciosa, é a Lua reluzindo no firmamento como
uma pérola. Esse desenho como reportamento de Kane terá ainda duas funções
literárias no conto: a primeira, a de ratificar que a diegese (dimensão
ficcional da narrativa)[5]
se passa nos lugares altos, num nível
muito acima do asfalto, dos transeuntes, das habitações, portanto um
acontecimento silencioso, discreto, distante, que se desenrola em meio à rotina
despercebida dos civis comuns. A segunda função é a da iconografia (conjunto de
sentidos de um ícone) que envolverá, doravante, a correlação Batman–Lua, sempre
reforçando o clima obscuro e a ideia de um morcego humano avultar por sobre a
penumbra da Lua. Será baseado nessa iconografia Batman–Lua, nascida neste conto
e repetida nos subsequentes, que Julius Schwartz, em 1964, inserirá a elipse
amarela no peito do Homem-Morcego[6].
Um dos 7 bonitos enquadramentos de Bob Kane, tendo a Lua como um reportar para diversos significados do batverso ainda embrionário. |
–, que como um cristal é indiferente à
aventura humana na Terra. Mesmo lá, no plano alto, intocável a mãos humanas, seu
brilho cristalino alcança o plano baixo da Detective Comics 28, refletindo-se nas
poças d’água no chão de Gotham City, num sinal de que sua indiferença é
retribuída pela indiferença de muitos homens que, alvoroçados pela correria de
obter ganhos ilícitos, sempre olhando para baixo, nem tempo têm de levantar o
rosto para contemplar o céu entre os arranha-céus. “Na cidade, a lua, a joia branca que boia na lama da rua”, dizia o
poeta modernista Guilherme de Almeida.
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(*) Professor de Língua Portuguesa,
Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras,
articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.
[1]
Do italiano “coisa nossa”, é uma expressão idiomática para uma sociedade
secreta criminosa que dá origem à máfia. A cosa
nostra também se desenvolveu na costa leste dos Estados Unidos e na
Austrália no final do século XIX, seguindo as ondas de imigrantes do sul da
Itália, depois de várias nacionalidades durante os anos da Lei Seca. Muitos beneficiados
não consideram essas sociedades como criminosas, e sim modelos ou protetoras, uma
vez que, no entender deles, o Estado foi incapaz de oferecer proteção aos
fracos, pobres e imigrantes. Cf. SIGNIER, Jean-François; THOMAZO, Renaud. Sociedades Secretas, vol. III: Sociedades
Iniciáticas e Criminosas (trad. Ciro Mioranza). Cap. XXII: “A onipotência da cosa nostra”. São
Paulo: ed. Larousse, 2008, pp.156-159. Ver também “A hierarquia da Cosa Nostra”.
[2]
Alguns heróis que, em seu vigilantismo, também exploravam o espaço aéreo (seja nas
pulps, nas tiras de jornal ou em HQ) na Era de Ouro: Tarzan (magazine, 1912), John
Carter e a Princesa de Marte (pulp fiction, 1912/Dell Comics, 1939), Zorro (pulp fiction, 1919), Buck Rogers (pulp ficition, 1928), O Sombra (tiras de jornal, 1931), O Aranha (pulp fiction, 1933), Morcego Negro-I, (pulp fiction, 1933), Doc Savage (pulp ficition, 1933), Flash Gordon (tiras de jornal, 1934), O Fantasma (tiras de jornal, 1936), Ka-Zar (Timely Comics, 1936), Superman (National Periodicals, 1938), Vingador Escarlate (National Periodicals,
1938), Pequeno Polegar [Doll Man] (Quality
Comics, 1939), Besouro Azul [Dan
Garret] (Fox Feature Syndicate, 1939), Morcego
Negro-II [Anthony Quinn] (pulp ficition, 1939), Tocha Humana [Centelha] (Timely Comics, 1939), Flama [Gary Preston] (Fox Feature Syndicate, 1939), Wonderman (Fox Feature Syndicate,
1939), Spirit (tiras de jornal,
1940), Tio Sam (Quality Comics,
1940), Mr. Scarlet (Fawcett Comics,
1940), Capitão Marvel Shazam (Fawcett
Comics, 1940), Homem & Mulher-Bala
(Fawcett Comics, 1940), Abelha Vermelha
(Quality Comics, 1940), Besouro Verde
(Helnit Comics, 1940), Condor Negro (Quality
Comics, 1940), Spy Smasher (Fawcett
Comics, 1940), Lanterna Verde [Alan
Scott] (National Periodicals, 1940), Espectro
(National Periodicals, 1940), Lady
Fantasma (Quality Comics, 1940), Bela
Liberdade [Libby Lawrence] (Charlton Comics, 1940), Átomo (National Periodicals, 1940), Hourman [Rex Tyler] (National Periodicals, 1940), Marvelboy [Martin Burns] (Timely Comics,
1940), Lightning (Fiction House,
1940), Fiery Mask (Timely Comics, 1940),
Parafuso Azul [Blue Bolt] (Novelty
Press, 1940), Thor [Grant Farrel] (Fox
Feature Syndicate, 1940), Mulher-Maravilha
(National Periodicals, 1941), Miss
América (Quality Comics, 1941), F.A.I.X.A.,
Sideral, Starman, Celestial (National Periodicals, 1941), Minute-Man (Fawcett Comics, 1941), Soldado Desconhecido (Ace Comics,
1941), Mary Marvel e Capitão Marvel Jr.
(Fawcett Comics, 1941), Lone Warrior
(Ace Comics, 1941), Firebrand (Quality
Comics, 1941), Falcão Negro (Quality
Comics, 1941), Capitão Meia-Noite (tiras
de jornal/Fawcett Comics, 1942), Kid
Eternidade (Quality Comics, 1942), Ray
[Happy Terrill] (Quality Comics, 1942), Boy
King (Hilman Comics, 1943), Atoman
(Spark Publication, 1946), Canário Negro
[Dinah Drake] (National Periodicals, 1947), Turok (Dell Comics, 1954). Esses foram os mais conhecidos
personagens a mim possíveis de coletar, haja vista o Comic Book Collections coletar 58 editoras de comics da Era de Ouro,
cada uma com uma média de 20-25 títulos mensais/bimestrais.
[3]
Bob Kane (1915-1998) era de ascendência judia austríaca, filho de Augusta e
Herman Khan, judeus ashkenazim. Não se sabe se seu contato com a cabala foi de
cunho religioso ou apenas por curiosidade, como escopo para seu trabalho
artístico. Cf. KANE, Bob. Batman and Me.
An Autobiography by Bob Kane. With Tom Andrae. New York: Eclipse Books,
November 1, 1989.
[4]
7 é uma combinação do 3 com o 4; o 3, representado por um triângulo, é o espírito
(aludindo à Stmª Trindade); o 4, representado por um quadrado, é a matéria
(aludindo à geometria). O 7 é espírito na Terra, apoiado nos quatro elementos
ou a matéria iluminada pelo espírito. É a alma servida pela natureza.
[6]
A elipse amarela com um morcegoide ao meio representa um morcego voando sobre a
projeção da lua na linha do horizonte, cena que Batman simulará em seus saltos
por toda a idade dourada. Cf. Mundo dos
Super-Heróis nº 56. In. “Batman, a
trajetória”. São Paulo: ed. Europa, 2014, p.34.