Assassinatos na Rua Nobre

                                                                                                                                                                             | Wagner Williams Ávlis*

  Sinopse


“O Caso da Sociedade Química”. Detective Comics #27 (maio 1939). Roteiro de Bill Finger, arte de Bob Kane. Coleção DC 75 Anos vol. I de IV – A Era de Ouro. Ed. Panini, nov. 2010, pp.22-27.
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Os sócios-empresários de uma sociedade anônima da indústria química Apex estão sendo sumariamente assassinados sem que a polícia tenha em vista algum suspeito. Quando o filho de uma das vítimas passa a ser visado pelo comissário, um vigilante noturno mascarado com visual de morcego e métodos dedutivos nada convencionais se antecipa à polícia e passa a investigar por conta própria a onda de assassinatos.

Análise

O Caso da Sociedade Química[1] – o conto de estreia do Cavaleiro das Trevas, hoje avaliado em US$ 1.075.500, segundo a casa de pregões Heritage Auction Galleries no último leilão (25/02/10) – não possui nada de genial, destacando-se por questões históricas e de gênero do que por qualidade literária. A estrutura da história segue a fórmula das pulp ficitions policiais [mistério + investigação + conspiração + violência + desvendamento], gênero em voga na época. Como crítico literário digo que é possível ver alguma proximidade com Assassinatos na Rua Morgue (1841), conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), devido a estes aspectos:
·         Um detetive autodidata mais perspicaz do que a perícia legal.        [2]
·         Suspense investigativo.
·         Cenário único dos dois principais crimes (uma rua de um bairro nobre).
·         Incriminação de um inocente (o filho único do empresário Lambert).
·         Condição macabra do desfecho.

Julguei por bem assinalar a proximidade do conto de Allan Poe porque, sendo este o primeiro texto artístico envolvendo investigação e inaugurador do gênero policial, seus elementos continuam a influenciar os romances detetivescos, de Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes), Agatha Christie (Hercule Poirot/Miss Marple), G. K. Chesterton (Padre Brown), Bioy Casares e J. L. Borges (Don Isidro Parodi) a Dan Brown (Robert Langdon), o cinema noir, as pulp fictions e HQs de detetive, ainda hoje ressonando nos comics de Batman. Do mesmo modo como em Assassinatos na Rua Morgue, a narrativa de O Caso da Sociedade Química está em 3ª pessoa (narrador observador[3]) com uma trama corrida. O narrador é observador para atender a uma função literária, o mistério. Observe um exemplo:

“Batman examina o papel que tomou dos assassinos e sorri. Então, dirige-se rapidamente a um local desconhecido” (p.03).

O trecho (mais suas imagens) não nos revela o que o Vigilante de Gotham viu no papel para sorrir, nem aonde se dirigiu; mantém-se a tensão do mistério, instigando o leitor a virar a página em busca de resposta (dadas somente no fim). Se Bill Finger compusesse a narrativa com onisciência[4] todo o teor de mistério da história se dissolveria – e portanto toda a lógica detetivesca da leitura; se tivesse composto em 1ª pessoa (narrador-personagem[5]) o ângulo da investigação se limitaria ao olhar subjetivo de Bruce Wayne, eliminando a objetividade, caráter indispensável ao engenho investigativo.
O detetive Monsieur C. Auguste Dupin, protagonista da obra "Assassinatos na Rua Morgue", de E. Allan Poe, precursor de Sherlock Holmes e de todo o gênero policial da literatura, do cinema e das HQs.
A narrativa é corrida por dois motivos, um estrutural e outro corporativo. Estrutural porque em apenas 6 páginas emula o corre-corre do DPGC (Departamento de Polícia de Gotham City) no afã de achar um suspeito dos assassinatos num curto prazo, e, no contrabalanço, a pressa de Batman em chegar sempre primeiro do que o DPGC na resolução do caso. O motivo corporativo foi o de Vince Sullivan, no tempo editor da DC, ter imposto um prazo irresponsável de um final de semana para Bob Kane – na época da Grande Depressão, um jovem ávido por um contrato fixo – para conceber um personagem que concorresse em público e em vendas com o rentável Superman dos inovadores Jerry Siegel e Joe Shuster. Recorrendo ao parceiro de trabalho Bill Finger, Bob Kane e este elaboraram, às pressas, Batman, roteiro, desenhos, de um domingo para uma segunda-feira[6], já no prelo para impressão. Esse fato, além de explicar a rapidez da trama de 6 páginas, explica ainda o porquê da primeira história de Batman não ser a primeira história do Batman e não contar sobre sua origem – uma exceção na onda criativa do panteão DC.
O leitor novato do Batman da Era de Ouro (1938-1956) precisa atentar-se para este detalhe, o de que Detective Comics n º 27 não é a primeira aventura do Detetive Mascarado[7], mas se insinua como sendo um dos muitos casos de sua carreira já em curso nos anos iniciais. Para perceber isso não carece de esforço. Toda a narrativa de “O Caso da Sociedade Química” foi escrita com verbos no tempo presente, indicando que os acontecimentos ali relatados estão acontecendo no momento mesmo em que se relata, e não nas memórias de Bruce Wayne. Ao abrir a história o narrador nos diz que “Batman é um personagem misterioso e aventureiro [...] em sua solitária batalha contra o mal. Sua identidade permanece desconhecida”. O verbo “permanece” designa um fato em curso contínuo, ou seja, Batman já era uma figura popular no imaginário urbano de Gotham City antes mesmo de se contar aquele caso, porém, para os gotamitas, ele ainda é um mistério. Reforçam essa certeza personagens como o comissário Gordon, que, no conto, já andava no encalço do vigilante, a polícia, que o vê como um fora da lei, chegando a disparar contra ele (24ª quadrícula), e um capanga do antagonista, que reconhece Batman ao ser surpreendido por seu vulto notívago (19ª quadrícula). Esse aspecto acidental na estreia do Homem-Morcego ao invés de atrapalhar, ajudou. A origem do super-herói foi ocultada por quase um ano, capturando a curiosidade dos leitores e fazendo do personagem o segundo mais vendido dos comics (depois do Superman), concretizando a intenção do editor da DC, Vince Sullivan.
A trama de Detective Comics 27, embora convencional, guarda suas curiosidades criativas. Com efeito ela é palaciana, isto é, passa-se nos postos das altas castas sociais, porém sua linguagem bivalente[8] nos transporta para o mundo mais familiar, o da informalidade, não tornando o leitor um excluído daquilo que lê. O sr. Bruce Wayne aparece com trejeitos e ares de Sherlock Holmes, isso porque, conforme a autobiografia Batman & Me, an Autobiography by Bob Kane, with Tom Andrea (Eclipse Books, 1989), Kane afirmara que Holmes foi uma de suas inspirações na concepção do Batman e quis registrar isso desenhando Bruce Wayne com sobretudo xadrez, chapéu, cachimbo à inglesa vitoriana. A edição também mostra que foi Batman o primeiro super-herói a empregar aquele costume de desaparecer no ato de distração de seus interlocutores (e não o Superman ou o Flash “Joel Ciclone”), posto que em sua primeira aparição nas HQs o Detetive Mascarado “some” numa distração do personagem Paul Rogers, resgatado do perigo (50ª quadrícula):

– Como posso lhe agradecer? Por que... Ué, Ele se foi! (p.06).
O sr. Bruce Wayne de 1939 (à dir.) de xadrez, chapéu, cachimbo, ao estilo Sherlock Holmes, segundo Bob Kane, uma homenagem feita por ele ao personagem que inspirou a criação de Batman.  
Some-se a isso o código de conduta justiçador de Batman: nas primeiras edições ele não hesitava em ceifar a vida dos malfeitores, como ocorre no conto em questão. Aqui ele tira a vida de pelo menos dois deles, um capanga (arremessado do cume da casa) e do antagonista Alfred Stryker. O roteiro demonstra um Bill Finger com potenciais técnicas literárias (o que veio a torná-lo, a meu ver, o melhor roteirista da Era de Ouro, junto com Bill Parker do Capitão Marvel) mais tarde maturadas em edições subsequentes. A sociedade industrial química, elaborada por ele nesse conto, é dissolvida quando o último dos sócios é dissolvido em um tanque químico de ácido[9]; note-se aí a técnica da metalinguagem, compor um roteiro, aludi-lo ao seu título ou tema e encerrá-lo com uma linguagem que fala da própria linguagem do roteiro. Finger amadurecerá essa técnica e eu a discutirei em outras críticas.
Com um golpe de judô (kata-guruma), o Detetive Mascarado lança do teto abaixo um capanga, já morto na quadrícula seguinte (no chão). Em seguida, o vilão Alfred Stryker é precipitado em ácido. No início dos anos dourados Batman não tinha ainda consolidado seu código de conduta, não hesitando em matar, um dos motivos por ser visto como um fora da lei.

Após a dissolução de O Caso da Sociedade Química o roteiro deixa patentes duas necessidades tão importantes quanto qualquer necessidade química nossa: a necessidade de acreditar na justiça e a de não confiar cegamente em toda gente, mesmo quando esta são nossos sócios de negócio. Bat-abraço.
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.



[1] Por ser a primeira aparição de Batman, esse conto é um dos mais republicados em coletâneas retrôs do personagem. Em meu acervo ele se repete nos seguintes títulos: As Várias Faces de Batman: A Evolução do Homem-Morcego da Década de 1940 à Atualidade. “O Caso da Quadrilha dos Químicos”. Ed. Abril, 1989. Batman, Primeiros Combates – A Aventura de Estreia do Homem-Morcego (As Primeiras Aventuras de Batman). “O Caso dos Químicos”. Coleção Invictus nº 18, ed. Nova Sampa, 1995. Detective Comics, As Quatro Primeiras Histórias de Batman (edição de colecionador – texto em inglês). “The Case of the Chemical Syndicate”. Ed. Abril, 1995. Batman Crônicas vol. I (As Primeiras Histórias em Ordem Cronológica). “O Caso da Sociedade Química”. Ed. Panini, 2007. Coleção DC 75 Anos vol. I de IV – A Era de Ouro. “O Caso da Sociedade Química”. Ed. Panini, 2010. Batman Silêncio (parte I). Coleção DC Graphic Novels. Anexo: “O Caso da Sociedade Química”. Ed. Eaglemoss, 2015.

[2] Um ponto comum no conto e no quadrinho é o mote sobre a diferença entre inteligência e perspicácia, que em Allan Poe fica explícito, em Bill Finger fica subentendido. O narrador de Assassinatos na Rua Morgue divaga: “Perspicácia verdadeira é algo raro, não é apenas inteligência. Inteligência é o básico da mente, assim como a força é o básico do corpo. Ler é o exercício do homem inteligente, isso permite que ele acumule informações. Perspicácia é a inteligência com atenção aos detalhes” (p.08). Com isso o narrador atribui a perspicácia ao detetive Monsieur C. Auguste Dupin, protagonista do conto, enquanto a inteligência à polícia. As quadrículas de O Caso da Sociedade Química nada discutem sobre o mote, chegando a deixar o jovem playboy, o sr. Bruce Wayne, em segundo plano e silencioso durante a atuação da perícia. Entretanto, o silêncio de Wayne nos conta, nas entrelinhas, o quanto seu gênio investigativo-dedutivo é superior à toda a equipe policial, já que Wayne está sempre à frente da polícia nos flagrantes delitos. Bill Finger atribui assim a perspicácia a Bruce Wayne, enquanto a inteligência à polícia. Cf. POE, Edgar Allan.  Assassinatos na Rua Morgue & Outras Histórias (trad. William Lagos). São Paulo: L&PM Pocket, 2002, 160 págs.  Ver também a versão em quadrinhos: Assassinatos na Rua Morgue, adaptação por Carl Bowen, desenhos Emerson Dimaya, tradução Cassius Medauar. Belo Horizonte: ed. Farol Literário, 2014, 65 págs.

[3] O foco narrativo de terceira pessoa é onde o narrador não participa ativamente dos fatos relatados. Nessa condição podemos afirmar que a narrativa assume um caráter mais objetivo, tendo em vista que o narrador permanece “do lado de fora”, limitando-se somente a nos repassar o que vê. O narrador observador é de 3ª pessoa porque ele não conhece toda a história, apenas se limita a narrar os fatos à medida que eles acontecem. Assim sendo, o narrador não interfere na trama, apenas a observa de perto ou de longe.

[4] Narrador onisciente é o tipo de narrador que conhece toda a história nos 3 tempos, passado, presente, futuro, até mesmo o pensamento e os sentimentos dos personagens.

[5] No foco narrativo de primeira pessoa, como o próprio nome indica, o narrador se torna também um personagem, assumindo a condição de narrador protagonista ou coadjuvante. Por essa razão, afirma-se que traços subjetivos tendem a se manifestar, tendo em vista o envolvimento emocional no desenvolvimento da trama.

[6] GUEDES, Roberto. “Mentiras, trapaças, sujeiras, roubos, o lado negro, as falcatruas e polêmicas que permeiam a criação dos super-heróis – os segredos da batcaverna”. In. Mundo dos Super-Heróis nº 43, maio de 2013, pp.32-34.

[7] Tampouco Detective Comics foi um gibi do Batman. A HQ foi uma coletânea de histórias e desenhos de personagens detetives, espiões, investigadores, policiais, dentre os quais Batman era só mais um em meio a outros em vias de popularidade, como Buck Marshall, Bruce Nelson, Doutor Fu Manchu, Slam Bradley (este de Jerry Siegel e Joe Shuster). Batman mostrou-se um detetive tão peculiar que no mês seguinte à sua estreia ofuscou todos os demais detetives da HQ, tornando-se o astro principal estampando todas as capas da Detective Comics a partir da edição nº 35.

[8] Duas linguagens que coexistem dentro da mesma história: uma mais formal, culta, outra mais coloquial, usada no dia a dia.

[9] Esse episódio da queda em um tanque ácido será reaproveitado pelo mesmo Bill Finger para contar a origem do Coringa 12 anos mais tarde em “O Homem do Capuz Vermelho”, Detective Comics #168 (1951). Em 1988 Alan Moore seguiria o mesmo percurso de reaproveitamento de Finger em Piada Mortal.

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