O cinema europeu e o sexo




O tema “sexo”, no cinema europeu, é sempre mostrado numa abordagem muito diferente daquela que estamos acostumados a ver no cinema norte-americano, qualquer que seja essa abordagem (seja sob um olhar heterossexual, homossexual, bissexual, sexo a três ou mesmo incestuoso).

O americano padrão é (falsamente) puritano, e o cinema tradicional estadunidense em geral costuma mostrar o sexo como um mal, um pecado onde “o salário muitas vezes é a morte”, quase uma premonição para o espectador, algo do tipo “se fizer sexo fora do usual e do casamento serás um pecador, condenado ao inferno e à morte”.

E as mulheres, “prá variar”, são quase sempre a personificação deste mal – exemplos clássicos: “Atração fatal”, “Instinto selvagem” (“Basic Instint”), “Corpos ardentes”(“Body Heat”), no qual a mulher é vista como provocadora, dissimulada, provocativa, e o homem a “vítima inocente”.



É certo que, depois de “Sexo, mentiras e videotape” (de Steven Soderberg), o cinema americano virou “indie” (cinema independente, produzido fora dos grandes estúdios cinematográficos), ganhou “status de maturidade, completou maioridade, e tornou-se adulto”, e nunca mais foi o mesmo. 



E hoje já vemos belos filmes americanos sem o ranço do preconceito, como é caso do sensível “O segredo de Brokeback Mountain” (se bem que aqui, teve a parceria do cinema liberal canadense e a direção do cineasta chinês radicado na América, o veterano Ang Lee).



Já o cinema europeu, ao contrário, já nasceu “adulto”, e trata de temas indigestos, ligados a relacionamentos sexuais conflituosos, com uma sensibilidade e uma delicadeza apaixonante, sem culpas ou acusações; em geral é o espectador que tirará seus próprios conceitos em relação ao que está por assistir.

É preciso sensibilidade para apreciar esse cinema reflexivo, cheio de nuances, de tomadas longas, com a câmera muitas vezes em “zoom”, ora em preto e branco, ora captando em “slow-motion” as emoções dos seus personagens... o cinema europeu é, antes de tudo, uma obra de arte.

Assim, para ficar a par do belo, intimista e inovador cinema europeu, dando início a uma “série” sobre o cinema europeu, selecionei alguns clássicos do majestoso cinema italiano, com alguns dos seus grandes cineastas, representantes desse universo sensual e sexual.

Bernardo Bertolucci ficou consagrado em seu país, a Itália, e ganhou notoriedade quando escandalizou o mundo inteiro com seu “Último tango em Paris” na década de 70 – o mundo, e principalmente a América conservadora, não estava preparada para tanto sexo (quase) explícito para a época num filme clássico não pornográfico.



Ousado, o cineasta continua na ativa (um pouco mais devagar por conta da idade), com filmes de uma versatilidade extraordinária, cada vez nos surpreendendo com seus temas variados, que vão desde biografias a temas sobre sentimentos e relacionamentos conflituosos, com roteiros sempre inteligentes e movimentos de câmera sofisticados.

Além do “Tango em Paris”, Bertolucci lançou o polêmico “La Luna” (e depois sedimentou sua fama no mundo, com a bela e envolvente fotografia da magistral megaprodução “O último imperador” sobre os dias do último imperador da China e o início da República naquele país, arrematando vários Oscar, incluindo melhor filme e melhor diretor, na década de 80); e a mais recente ousadia foi “Os sonhadores”, em 2003.

“La Luna” (“A lua”) foi filmado na virada da década de 70/80, e é considerada a obra mais polêmica e obscura de sua carreira, abordando o tema incesto num drama intimista e comovente.

O filme conta a história de uma temperamental cantora de ópera (a atriz Jill Clayburgh, no papel mais instigante e desafiador da sua carreira), com problemas com o filho desde a morte do marido, que se muda de Nova York para a Itália a trabalho, e assiste o declínio de seu filho no mundo das drogas; e quando tenta externar o seu amor pelo adolescente, numa tentativa de reaproximação visando livrá-lo da heroína, se vê envolvida numa relação de incesto com o filho, esfacelando assim seus laços afetivos.

Bertolucci consegue ser, apesar do tema e das cenas de sexo, incrivelmente delicado e sensível, numa montagem belíssima, sendo por isso considerado por muitos “o poeta das imagens”. A trilha do filme mistura óperas com clássicos pop, como “Night Fever” dos Bee Gees e a canção italiana San tropez Twist, de Peppino di Capri.



Já em “Os sonhadores”, Bertolucci usa como pano de fundo a cidade de Paris dos revolucionários anos 60, com seu tumultuado cenário político no ano de 1968, para contar a história de três jovens estudantes atraídos pela paixão por cinema, um casal de irmãos franceses que recebe um jovem americano (o ator e músico americano Michael Pitt, o mesmo de “Last days”) fazendo intercâmbio na Universidade de Paris, e que acabam se envolvendo numa ardente relação a três.



Com cenas de nudez, sexo e incesto, filmadas em longas tomadas, como sempre o diretor consegue realizar um belo filme, abordando novamente assuntos delicados, com tamanha sutileza e sensibilidade, ao som de “Hey, Joe” (canção imortalizada por Jimmy Hendrix, mas no filme é o próprio Michael Pitt quem canta a música, como vemos no “making of” do filme, com o ator/cantor e o diretor no ensaio da mesma), canção cuja letra combina com o turbilhão de sentimentos conflitantes dos personagens do filme. Temas difíceis de digerir é verdade, mas... é o cinema europeu... e Bertolucci é Bertolucci.



Já o consagrado diretor italiano Michelangelo Antonioni nos brindou com o seu inesquecível “Blow up”, (no Brasil, “Depois daquele beijo”), da década de 60 – a história de um fotógrafo inglês que vive num mundo materialista, e que trata as pessoas apenas como imagens, é um prato perfeito para a genialidade e a câmera de Antonioni.

O diretor (falecido há pouco tempo) consegue, com os seus enquadramentos, nos levar ao âmago da profissão do protagonista, ao construir cenas cinematograficamente perfeitas, como no momento em que o tal sujeito faz fotos para um editorial de moda em seu estúdio, em que várias modelos posam simetricamente separadas, enquanto algumas paredes de vidro dividem o cenário, refletindo a imagem delas. Genial.

O tal fotógrafo, durante uma tomada de fotos num parque londrino, fica intrigado com um casal furtivo (a mulher, a atriz Vanessa Redgrave em início de carreira) e começa a filmá-los e acaba documentando acidentalmente um assassinato, e a história irá se desenrolar em cenas recheadas de sensualidade, nudez e suspense, tendo como pano de fundo a chamada “rag week” (semana em que estudantes de várias universidades britânicas, angariam anualmente dinheiro para caridade, através de várias atividades divertidas), presente em quase todos os momentos da película, inclusive na cena final, e que traz um encanto a mais no contexto geral do filme.



Como curiosidade interessante do filme, temos a aparição da banda de blues-rock dos anos 60, “The Yardbirds”, tocando “Stroll on”, numa das cenas em um bar, com um dos componentes da banda, o então (quase) desconhecido guitarrista Jimmy Page, que mais tarde formaria a futura banda “Led Zeppelin” com o vocalista Robert Plant. 



No filme, vemos também o guitarrista Jeff Beck participando da cena, destruindo a guitarra e os amplificadores de som (na época, o futuro “bluesman” Eric Clapton já havia deixado o grupo, pois como purista do blues ficou descontente com os caminhos que a banda tomava pelo universo pop) – abaixo, a evolução do som da banda “The Yardbirds”, pré e pós Eric Clapton, até virar “Led Zeppelin”.



O prestigiado diretor Lucchino Visconti, dentre tantos filmes premiados (“O leopardo” com o eterno galã Alain Delon, “Noites brancas” com Marcello Mastroiani e “Rocco e seus irmãos”, também com Alain Delon), filmou, na década de 60, a bela adaptação do livro homônimo de Thomas Mann, “Morte em Veneza”, que se passa no início do século XX, e conta a história de um virtuoso músico (no livro, um escritor) de meia-idade, em crise existencial e pessoal, que desenvolve uma “paixão” platônica em Veneza, por um jovem púbere, de uma rara beleza quase andrógina.

“Mal comparando”, o filme lembra a história de “O retrato de Dorian Gray”, pois a atração do músico não está exatamente na carne, numa relação homossexual, e sim na forma idealizada de beleza que o protagonista já não vê mais em si mesmo, o viço da juventude que se foi com a idade, deixando no seu corpo envelhecido a certeza de que o fim estaria próximo.

Na bela Veneza tomada pela peste, os longos zooms de Visconti mostram o processo de decadência e introspecção cada vez maior do músico, que sequer ousou dirigir um dia uma palavra sequer ao seu “amado”.



A câmera vai e vem, se esgueirando pelas ruelas da cidade, tornando-se cúmplice do protagonista, que se torna escravo do olhar platônico, num esforço perfeccionista para ver seu objeto de prazer (no vídeo abaixo, o belo ator sueco de nome Björn Andrésen está no “making of” do filme com o diretor). E Visconti demonstra, com as belas fotografias e a bela música de fundo, o grande amor que nutria pelos personagens dos seus filmes.




Esses são alguns exemplos do grande trunfo do cinema europeu, onde não há julgamentos pré-concebidos como no cinema americano, os personagens são vistos apenas como seres humanos, com seus defeitos e qualidades, seus sentimentos e relacionamentos (conflituosos ou não), verdadeiramente retratados mas apenas retratados, parafraseando Nietzsche, como “humanos, demasiadamente humanos”.

Postado por *Rosemery Nunes ("Adorável anarquista")

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