A gente se encontra na 66



Na sétima arte, a música tem o poder de impulsionar a narrativa, e contribui (e muito) para o sucesso de um filme, tanto quanto o roteiro, a direção, a fotografia e o desempenho dos atores. A presença de uma música em uma determinada cena tanto pode estabelecer um ponto de vista (dramático, cômico ou mesmo tragicômico) para a tal cena, como também pode proporcionar um ritmo (mais lento ou mais rápido) ajudando a conduzir a ação do protagonista, ou nos levar para o interior da mente de um personagem, ou mesmo enfatizar uma emoção, induzindo um estado de espírito no telespectador.

No filme “Tudo acontece em Elizabethtown” (o título refere-se a uma cidade do estado de Kentucky, nos EUA), a música faz “companhia” ao ator Orlando Bloom enquanto ele dirige pelo interior da América, cruzando de leste a oeste do país, levando as cinzas do seu pai, cumprindo postumamente a promessa de, já adultos, repetirem a viagem que fizeram no passado, pela famosa route 66– no filme, mais precisamente, a “route 60-B” (uma das saídas da famosa “route 66”), como insiste a também protagonista do filme, a atriz Kirsten Dunst, quando relembra ao deprimido Bloom: “Don’t forget: 60-B”.



O filme peca” por explorar muito pouco essa parte (menos de um terço da película), o estilo “road-movie”, que é a verdadeira “graça” do filme, (imagina desbravar "o horizonte", em busca de um novo amanhã, ao som de músicas divinas), perdendo muito “tempo” com explicações sobre a depressão do personagem, por seu fracasso publicitário e às voltas com a família e o velório do pai.

Cameron Crowe, conhecido diretor que sempre utiliza a música quase como um protagonista nos seus filmes (vide “Quase famosos”), aqui também em Elizabethtown”, o cineasta faz uso da trilha sonora (montada pela personagem da atriz Kirsten Dunst, numa espécie de diário de viagem) para levar o espectador ao âmago das emoções do ator principal, nas recordações da sua infância pela famosa estrada com seu pai ainda vivo, e agora carregando as cinzas do mesmo e as espalhando pelos caminhos históricos da rodovia, por onde também passaram Martin Luther king (pregando igualdade racial) e os famosos músicos da Lousiana e do Tennessee (no filme focando principalmente a cidade de Memphis).

O espectador vai sendo embalado (junto com o protagonista) pela voz envolvente de Ryan Adams com a ótima “Come pick me up, também a música “My father's gun” do eterno Elton John, a famosa Pride do U2, a ótima "Let it all hang out dos anos 60 do grupo The Hombres, Square one de Tom Petty and Heartbreakers, a voz cativante de Jeff Finlin em Sugar blue, e The Temptations nos anos 70 cantando “I can’t get next to you”, e tem muito, muito mais.



E se você for como eu que, como todo cinéfilo que se preza, nunca se contenta em assistir apenas ao filme (afinal cinema é também cultura, arte, lazer, terapia e muito mais) não perca, nos “extras do DVD” (a dica vai para os colecionadores), a íntegra do ótimo bate-papo (que infelizmente foi quase todo cortado na edição) dos atores, e de toda a equipe de produção, na cidade de Memphis, curtindo a famosa cerveja gelada do lendário bar “Earnestine and Hazel” e o seu cultuado e exclusivo “hamburger soul” (ao pé da letra, “alma de hambúrguer”) que, segundo a tradição, não há hambúrguer igual em toda a América”.

O proprietário atual do bar (um cara simpático de nome Russell) discursa sobre a cidade de Memphis e seus ilustres moradores como, por exemplo, Elvis Presley (a mansão Graceland, patrimônio da família Presley na cidade, hoje virou museu em homenagem ao cantor) e a fama do bar, com seus célebres freqüentadores de um passado recente (os anos 50/60), no auge da soul music" e do rockabilly (fusão da música country com o “rhythm and blues”, criada pelo próprio Elvis Presley).




A ascensão da soul music norte americana (uma mistura de música gospel com rhythm and blues) fez surgir, nos anos 60, gravadoras famosas, como a Stax records (hoje transformada em museu), com sede em Memphis, e tinha B.B. King, Ottis Redding, Albert King e Bobby Blue Bland como alguns dos seus maiores contratos (os “Stax’s musicians”) e estes eram “figurinhas fáceis” no bar da Earnestine (que, nos extras do DVD, vamos descobrir que era o nome da antiga proprietária, nos anos 50/60, uma simpática senhora negra e gordinha, que comandou o bar até os 80 anos de idade, segundo contam os moradores locais).




No bar ainda conserva-se, até os dias de hoje, o clima bucólico e démodé do recinto, com fotos dos seus ilustres freqüentadores (os “Stax’s musicians”) e ainda funciona a famosa “jukebox”, aquela maquininha que, ao se inserir moedas, reproduz músicas escolhidas pelo cliente em um catálogo próprio (eu tenho uma mini jukebox, uma graça). E ouvir Johnny B. Goode”, do Chuck Berry, em vinil e numa autêntica jubebox não tem preço.



A cidade de Memphis, no Tennessee, foi palco também de grandes acontecimentos que marcaram a história da América, na década de 60, como o assassinato de Martin Luther King num dos hotéis da cidade. O filme é um mergulho na alma e na música negra americana, focando principalmente a cidade de Memphis, no trajeto da famosa rodovia.

A “US Route 66 é uma antiga e famosa auto-estrada dos EUA que faz a ligação do Oeste ao Leste do país, desde Chicago a Los Angeles, passando por localidades rurais do interior da América, num total de quase quatro mil quilômetros de estrada.

Uma das mais conhecidas atrações da famosa rodovia é o “Cadillac Ranch”, onde um excêntrico milionário do Texas, amante de cadillacs, literalmente mandou enterrar, ao longo da estrada, cerca de 10 modelos dessa famosa marca de carro da General Motors, com a metade da frente do carro exposta em filas, onde o público pode grafitá-los ao seu bel-prazer.



Também conhecida como a “Main Street of America” ou a “America's Mother Road”, a estrada é berço do primeiro motel e do primeiro McDonald’s da América (e obviamente do mundo), e é considerada um dos símbolos da América ainda ingênua, perdida no tempo, longe da massificação e da globalização.

A rota 66 passou a ser palco de vários filmes, quando nos anos 40, o filme Vinhas da ira (The grapes of Wrath), dirigido por John Ford, mostrou o caminho da prosperidade, durante a Depressão americana”, através da rodovia, focando a história de uma família pobre de trabalhadores rurais se embrenhando  de Oklahoma até a Califórnia em busca do sonho americano”.




A produção infantil “Cars” dos estúdios Walt Disney Pictures em associação com a Pixar, usou a antiga música “Route 66” (“When you make that California trip, get your kicks on Route 66...”) como parte da trilha sonora do mesmo, que no filme foi interpretada por Chuck Berry e John Mayer, mas já cantada exaustivamente em "verso e prosa" por diversas bandas, inclusive The Rollings Stones.



A estrada também foi cenário do filme “Easy rider”, na década de 60, o famoso “road movie” dos motociclistas “Sem destino” (nome do filme no Brasil), o ameríndio Dennis Hopper e o Capitão América Peter Fonda, que conta também com Jack Nicholson como ator iniciante e coadjuvante (em atuação que o levou a categoria de astro), com uma ótima trilha sonora (Born to be wild virou o hino dos motoqueiros, entre outras ótimas músicas) impulsionando os personagens a desbravar a América, bem ao estilo Harley-Davidson de ser. Desde então a route 66 virou sinônimo de liberdade e aventura no imaginário popular.




E em Thelma and Louise”(dirigido por Ridley Scott), duas amigas ( as atrizes  Geena Davis e Susan Sarandon) resolvem sair da rotina de dona de casa e garçontete para se embrenharem na famosa rodovia, se envolvendo em complicadas aventuras e acabam sendo perseguidas pela polícia estrada afora. “Thelma e Louise” é praticamente a versão feminina de “Easy rider”.




E a famosa rodovia também é o palco da produção alemã “Bagdad cafe”, da década de 80. Num clima desértico e gélido, vai parar uma turista alemã após ser abandonada na estrada pelo marido, logo após uma briga, e ela na confusão pega por engano a mala do marido ao invés da sua. Sem rumo, acaba chegando ao tal “Bagdad cafe” e, inicialmente hostilizada pela proprietária, acaba ganhando a confiança da tal após mostrar sua performance em números de mágica (material que descobriu na mala do marido), tornando-se a atração do local para alegria dos caminhoneiros frequentadores. Jack Palance (de “Os brutos também amam”, mas mais conhecido no Brasil por conta da famosa série, da década de 60, “Acredite se quiser”), faz um papel coadjuvante interessante como um pintor local.




O filme é uma comédia dramática que ganhou repercussão internacional ao ganhar o Oscar de melhor canção original, “Calling you”, na linda voz de Jevetta Steele, uma cantora americana de música gospel. O título Bagdad cafe é o nome de um misto de motel, lanchonete e posto de gasolina, localizado na “route 66”, no meio do deserto de Mojave, deserto que corta o sul da Califórnia, desde o chamado “Vale da morte” (onde ocorre o curioso fenômeno das pedras andantes na Racetrack Playa, conhecida supersticiosamente como a praia do diabo), passando por Utah, depois por Nevada, próximo a Las Vegas, e pelo Arizona.

Como curiosidade, o misto de posto/motel, onde foi gravado o filme, era o Sidewinder cafe (o verdadeiro Bagdad cafe já não existia, na época do filme), mas devido ao sucesso do filme (e da route 66) foi trocado para o nome original do filme, tornando-se desde então um destino turístico, inclusive com fotos dos atores, e todo o elenco do filme, nas paredes do bar.




Nos dias de hoje, a “route 66” está com vários trechos abandonados, interditados e intransitáveis, mas ainda é a rota para se embrenhar no que sobrou da América aventureira, ingênua e longe da modernização (Well, if you ever plan to motor west, just take my way, that's the highway, that's the best, get your kicks on Route 66).



E termino este texto relembrando a frase do cantor Evandro Mesquita, em uma propaganda de cigarro (com a placa símbolo da “Route 66”), que ficou famosa na década de 80: “Te vejo na 66” (nem que seja através desses filmes e suas ótimas trilhas sonoras).



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