Faces da Morte: sr. Karl Hellfern, o Dr. Morte (1ª Aparição: Detective Comics nº 29, julho de 1939)

| Wagner Williams Ávlis*

[Este artigo é interligado à crítica “Sombras e Assombrações”]


A ciência também coleciona seus pecados. No percurso do seu desenvolvimento não houve somente fracassos e glórias, avanços e acidentes; houve também retrocesso, maldade, crimes. Esse testemunho real do lado negro das ciências[1], muitas vezes (e de forma deliberada) omitida pelos cientistas anticlericais, construiu um imaginário coletivo da figura do cientista louco, cientista por ser pessoa de ciência, louco “porque conduz experimentos proibidos que atravessam fronteiras que não deveriam ser atravessadas, e, como resultado, leva a consequências trágicas” (cf. “Nascimento da Ciência e da Ficção Científica”). Inicialmente na ficção o arquétipo do cientista louco representava o medo do desconhecido, as consequências de desafiar o mistério, a materialização da frase “agora eu sei como Deus se sente!”, do dr. Victor Frankenstein. Com o advento das duas grandes guerras e as consequentes ameaças de destruição em massa que a ciência produziu (i.e., as armas químicas, automáticas, os bombardeiros, a eletricidade, os mísseis, a bomba-atômica), entretanto, a coisa mudou de figura; o arquétipo do cientista louco, na ficção, passou a representar a ciência antiética a serviço do egoísmo e do mal.
O sr. Karl Hellfern, o Doutor Morte, vilão de Batman, é produto dessa última concepção pós-guerra de cientista louco, um químico que não se abstém de produzir experimentos letais para usar o perigo da morte como instrumento de extorsão. Diferente dos demais arquétipos nas HQs heroínicas, o Dr. Morte não tem a intenção de dominar o mundo ou ser reconhecido como gênio, limitando-se a enriquecer e a desejar seu cartel armamentício. Talvez por essa restrita ambição não ganhou a graça do público, teve poucas aparições no batverso; duas na Era de Ouro (1938-1954) em Detective Comics # 29 e 30, 1939, duas na Era de Bronze (1970-1986) em Batman # 345 e Detective Comics # 512, 1982, cinco na Era Moderna (1986 à atualidade): em Batgirl # 42-44 e 50, de 2003 a 2004, em Jogos de Guerra, de 2004, em 52!, de 2006, em Ruas de Gotham, de 2009, e nos Novos 52 em Batman # 25 e 29, no arco “Ano Zero”(2014),[2]; é, pois, na galeria de batvilões, um adversário de pouca relevância. O que torna Karl Hellfern relevante é a sua concepção enquanto personificação do imaginário coletivo da figura do cientista louco, subliminarmente inspirada na crítica à ciência nazista antes mesmo de essa ser empregada nos campos de concentração, no caso, no Instituto para a Hereditariedade, Biologia e Pureza Racial da universidade de Frankfurt, na Alemanha, já famoso em 1930 pela defesa e pelas pesquisas em eugenia[3] além das experimentações com armas químicas.
Sr. Karl Hellfern, o Doutor Morte, concebido por Gardner Fox, é a quadrinização da crítica à ciência bizarra, praticada normalmente no começo do séc. XX.

O fato é que com a difusão das teorias racistas[4], do determinismo naturalista, do darwinismo social, da eugenia, uma “ciência bizarra”, capaz dos mais atrozes experimentos de fundo legal, passou a avultar-se nos laboratórios, institutos, universidades, sendo transportada para a vilania nas radionovelas, no cinema, nas pulp fictions, nas tirinhas, nos comics. Karl Hellfern, o Dr. Morte, surge como uma personificação da crítica à ciência bizarra/antiética da época, a ponto de alguns leitores norte-americanos da gibigrafia de Batman o identificarem com Jack Kevorkian, um patologista americano que emprega e luta pela eutanásia como direito; na mídia, o dr. Kevorkian é também chamado “Dr. Morte”[5] por ter eutanasiado 130 pacientes, além da sua famosa frase: “Morrer não é um crime”. Não partilho dessa noção. O dr. Jack Kevorkian, apesar da sua polêmica eutanásia, não é um “cientista louco”, passou a militar pelo suicídio assistido nos anos 1980, 41 anos depois da aparição do Dr. Morte nos contos do Homem-Morcego. Minha hipótese se dirige no sentido de que o personagem vilão Karl Hellfern, o Dr. Morte, esteja relacionado ao cientista nazista Josef Mengele (1911-1979). Sem me deter em suas biografias, sintetizarei os pontos comuns entre um e outro.

Dr. Morte

Josef  Mengele
Químico, cientista louco
Médico, cientista louco
Nome de origem alemã (Karl Hellfern)
Nome de origem alemã
Alcunha de “Doutor Morte”
Alcunhas de “Anjo da Morte”, “Anjo Exterminador”, “Açougueiro”, “Doutor Morte”[6]
Iniciou as experimentações em 1939
Iniciou as experimentações em 1937
Inventor de armas químicas: patenteou o gás de pólen
Inventor de armas químicas: patenteou o gás de mostarda
Obcecado por fazer de outras etnias cobaias, apesar de admitir alguns servos de outras “raças” (o indiano Jabah, o cossaco Mikhail)
Obcecado por fazer de outras etnias cobaias, apesar de admitir alguns servos de outras “raças”, como os mischlinge (“mestiços”), judeus que auxiliavam a triagem de pacientes em Auschwitz
Foi modelo para outros cientistas loucos no batverso: Prof. Hugo Strange, Prof. Aquiles Milo, Doutor Moon, Robert Langstrom (Morcegomem), Jonathan Crane (Espantalho), Dra. Pamela Lilian Isley (Hera Venenosa), Dr. Victor Fries (Sr. Frio), Hugh Marder (Sr. Tóxico), Mr. Combustível
Foi modelo para outros cientistas loucos na comunidade científica: Shiro Ishii (Unidade 731, 2ª Guerra Sino-Japonesa), Vladimir Demikhov (implantador de cães), Robert J. White (transplantador de cérebros), Ilya Ivanovich Ivanov (inventor do Macacomem), Giovanni Aldini (“ressuscitador” de defuntos)[7]

Jack Kevorkian ou Josef Mengele? Pode ser que em nenhum dos dois o Dr. Morte tenha sido inspirado, sendo um arquétipo geral para qualquer cientista louco na História, todavia há inegáveis semelhanças com Josef Mengele.
As semelhanças entre os dois personagens são grandes para ignorar alguma correlação ainda que nada disso esteja registrado nos anais da DC Comics. De todo modo, é certo que o Doutor Morte é um personagem-tipo, isto é, uma figura humana que representa um determinado tipo de comportamento de um grupo[8], no caso, o grupo dos cientistas que andam no limiar da sabedoria e da loucura, e, desse modo, traduz a crítica do roteirista Gardner Fox àquela forma de se fazer e conduzir ciência. Karl Hellfern, o Dr. Morte, como todos os arquétipos semelhantes nas HQs, foi uma forma lúdica de dizer às gerações infanto-juvenis passadas o que diz às atuais gerações Sua Santidade, o Dalai Lama: “Cérebros brilhantes também podem produzir grandes sofrimentos. É preciso educar os corações”.
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.




[1] Indico a leitura de NOGUEIRA, Salvador. Superinteressante – Ciência Proibida: As Experiências Científicas Mais Perigosas, Assustadoras e Cruéis Já Realizadas. São Paulo: ed. Abril, 2015.


[3] Convém lembrar que o conceito de “raça pura” ligado à eugenia não veio da ideologia nazista, e sim da própria Biologia do séc. XIX envolta por postulados evolucionistas ainda em desenvolvimento. “O 1º congresso internacional de eugenia aconteceu em 1912 na Inglaterra e contou com a presença de gente da estirpe do ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill, o inventor Alexander Graham Bell e o filho de Charles Darwin, Leonard Darwin. A nova ciência se espalhou rapidamente para os EUA, onde mais de 100 mil pessoas foram esterilizadas, no período de 1907 a 1960, com base nela. Naquela época, a eugenia não era vista como uma maluquice, mas como uma ciência respeitável, praticada internacionalmente. Nas mãos do futuro führer, transformou-se em arma política”. Cf. REZENDE, Rodrigo. Ciência Nazista. In. Aventuras na História – Nazismo, As Grandes Reportagens. Cap.1: “O nazismo: origem e evolução”. São Paulo: ed. CARAS, 2015 (vários autores), p.36.

[4] O racismo “científico” do séc. XIX nublava os olhares das elites europeias ao descrever populações. O conde Arthur de Gobineau (1816-1882), teórico racista e amigo de D. Pedro II, em visita ao Brasil entre 1869 e 1870, ficou chocado com a miscigenação do nosso povo: “[...] A população é mulata, com sangue e espírito viciados e feia de meter medo [...]. Os resultados da mistura de brancos, negros, índios, são compleições raquíticas que, se nem sempre são repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos”. Ironicamente, Gobineau não podia imaginar que, décadas depois do seu infeliz julgamento, a miscigenação seria reconhecida como um dos nossos grandes patrimônios, e que a beleza corporal brasileira ganharia e encantaria o mundo. Cf. "Feiura é de quem vê". In. Revista de História da Biblioteca Nacional, edição nº 125 (julho de 2016). Rio de Janeiro: Min. da Cultura, p.11.

[5] Cf.Wikipédia – A Enciclopédia Livre. Jack Kevorkian:  https://en.wikipedia.org/wiki/Jack_Kevorkian

[6] SZKLARZ, Eduardo. Escondido, Pero no Mucho. In. Aventuras na História – Nazismo, As Grandes Reportagens. Cap.4: “Nazistas pelo mundo”. São Paulo: ed. CARAS, 2015 (vários autores), p.117.

[8] NICOLA. José de. Painel da Literatura em Língua Portuguesa – Brasil, Portugal, África, 2ª ed. Cap.11: “Os estilos de época medieval, o Humanismo”. São Paulo: ed. Scipione, p.156.

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