Adoro ler, e dizem que, quem gosta de ler, pode até estar só, mas nunca será um solitário; e é a mais pura verdade, o livro é um companheiro que não nos decepciona (se bem escolhido, é claro, como qualquer companhia). Com a leitura atravessamos fronteiras – dos países, do mundo, do universo, e até as da alma – viajamos, inclusive, para dentro de nós mesmos.
Com o livro, a imaginação corre solta, o autor descreve um personagem, uma cena e/ou uma paisagem, mas fica a cargo dele só o esboço, cabendo a nós, leitores, criarmos a imagem na fantasia do nosso subconsciente da melhor maneira que nos agradar a imaginação.
Já o cinema, ao contrário, já traz o personagem “pronto”, as paisagens já estão ali, do jeito que o diretor e o produtor imaginaram a cena descrita. Por exemplo, de um best-seller literário a cena é captada “à semelhança” da imaginação do cineasta, mas em compensação, se “cair” nas mãos de um diretor perfeccionista e de um talentoso ator, está garantido o eterno registro de uma cena cuja expressão do ator ficará marcada, para sempre, na nossa memória, principalmente se a cena é acompanhada de uma bela trilha sonora.
O grande cineasta sueco Ingmar Bergman deixou escrito: “Cinema é como um sonho, como uma música. Nenhuma arte perpassa a nossa consciência da forma como um filme faz: vai diretamente até nossos sentimentos, atingindo a profundidade dos quartos obscuros de nossa alma”.
Por exemplo, em “Cinema Paradiso”, Oscar de melhor filme estrangeiro de 1988, é absolutamente inesquecível o olhar hipnotizado e marejado do protagonista (não importa quantas vezes eu reveja a cena, eu sempre me emociono junto com o personagem), diante das cenas “emendadas” de beijos e mais beijos famosos, desde os primórdios do cinema na telona, ao som instrumental da bela trilha sonora do maestro italiano Ênio Morricone. Magistral.
Em tempo: as dicas aqui vão apenas para filmes independentes e/ou europeus, filmes esses que, em geral, passam longe do “circuitão”, muitas vezes não chegando ao grande público, e para quem não viu e pretende ver este e outros filmes, deixe para ver depois (esta e as demais cenas deste texto), porque por exemplo esta cena do filme é antológica e imperdível na sequência deste que é a mais bela homenagem do cinema (sob a forma de metalinguagem) para o próprio cinema.
Em “Simplesmente amor” (“Love actually”), não há como não se emocionar com a expressão de surpresa e encantamento da atriz Kira Knightley, quando descobre, sem querer, a paixão platônica e secreta que o melhor amigo do seu companheiro nutre por ela, sob o olhar constrangido e desesperado do mesmo, na pele do ator Andrew Lincoln.
E ainda nesse filme, a dor da traição nos olhos marejados, na interpretação magistral da atriz Emma Thompson, nos leva a sofrer junto com ela (ah, a dor da traição, sempre muito triste e dolorosa), ao som da bela música “Both sides“ (dos anos 70) de Joni Mitchel.
Em “Antes do amanhecer” (“Before sunrise”) temos a singela e cativante cena de Ethan Hawke e Julie Delpy que, tímidos, desviam o olhar um do outro, ficam “sem graça” diante do crescente interesse um pelo outro, e não conseguem se encarar, ao som da música “Come here” de Kate Bloom.
O filme é o primeiro de uma trilogia que se completou com o segundo filme (“Before sunset, antes do pôr do sol”) com o reencontro do casal oito anos depois, e o terceiro filme (“Before midnight, antes da meia-noite”) só foi rodado, de novo com os mesmos atores, e de novo oito anos depois do segundo.
E quem nunca se envolveu sem querer com alguém (muitas vezes esse alguém “algo comprometido e enrolado”, visivelmente insatisfeito com o seu par), que tinha os mesmos planos e afinidades em comum, e sem perceber estão juntos mais tempo do que deviam, se divertem e curtem projetos em comum, e de repente, sentem falta um do outro, e “se traem” declarando sentir falta dos inocentes e-mails, dos breves encontros, etc, etc e etc ?
Esse é o tema do delicado e sutil filme, de produção independente, intitulado “Once” (“Apenas uma vez”); é preciso sensibilidade para perceber a sutileza das expressões e dos (poucos) diálogos dos personagens, músicos que se falam (e acabam se envolvendo) através de suas composições. A bela música “Falling slowly” levou o Oscar de melhor canção original em 2008.
Em “Quase famosos”, a personagem de Kate Russel nos emociona com sua disfarçada mas triste reação, na cena em que descobre que foi “trocada” numa aposta por um “punhado” de dólares e cerveja, e não consegue perceber que quem realmente gosta dela está o tempo todo na sua frente.
Em “Hora de voltar” (“Garden State”), dá vontade de “soltar os bichos” junto com o ator Zach Braff, na cena antológica em que ele na beira de um abismo, resolve dar seu “grito de liberdade” (a “alma imoral” se libertando das amarras possessivas do corpo), ao som de Simon and Garfunkel, com a música “The only living boy in New York”.
O diretor húngaro István Szabó (de “Mephisto e “Sunshine”) disse certa vez: “o cinema é a única arte que consegue captar e registrar para sempre em imagens eternas o rosto, os olhos e as expressões humanas... é como escrever com a câmara”.
O cinema tem essa pequena vantagem sobre a leitura, mas a verdade é que um complementa o outro, simplesmente não dá para viver sem os dois. Junte a isso, a dança e a música... e “o mundo está a salvo”. Pelo menos para mim.
Postado por *Rosemery Nunes ("Adorável anarquista")
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