Infância e nostalgia (e o cinema como testemunha)






Fim de ano e início de ano vindouro (a chegada do Natal, Ano Novo, férias) sempre me deixam extremamente saudosista. Como trabalho em uma Universidade, o meu contato com jovens adultos é então diário. Daí, há algum tempo, num dos papos informais (que sempre rola nos intervalos da labuta), um dos alunos de Medicina, também cinéfilo como eu, começou a falar de filmes que, através da metalinguagem, homenageiam o próprio cinema.

E citou o recente “Hugo” (filme americano premiado no Oscar e no Globo de Ouro, em 2012, em várias categorias) e o antigo “Cinema Paradiso”, ganhador do Oscar estrangeiro de 1988, este último, uma pérola do cinema italiano (a mais bela homenagem ao cinema que já assisti até hoje, numa metalinguagem jamais repetida à altura, até os dias atuais), e infelizmente desconhecido de muitos dos jovens estudantes não cinéfilos que participavam do descontraído bate-papo saudosista.

Em tempo: o surgimento dos meus textos (e do meu blog) foi num papo assim, a pedido de jovens que curtem cinema, mas que não são cinéfilos (portanto sem grande conhecimento aprofundado da sétima arte) e queriam dicas do velho e bom cinema. E, obviamente, qualquer filme que, através da metalinguagem, homenageie o próprio cinema é fascinante para qualquer cinéfilo que se preze. 

Assim, o belo e eternamente cultuado “Cinema Paradiso” não poderia jamais ficar de fora do papo, e eu sou altamente suspeita quanto a esse filme em particular, em matéria de fascínio e saudosismo, pois ele me remete à minha infância onde nasci, na minha cidadezinha do interior fluminense, muito parecida com o vilarejo italiano do personagem cinéfilo e futuro cineasta, o menino Totó (praticamente o alter-ego do diretor Giuseppe Tornatore, numa magnífica semi-autobiografia). 

E a bela trilha sonora instrumental do filme, do maestro italiano Ênio Morricone, sempre me leva para o meu mundo particular de sonhos e fantasias, que só o cinema consegue me transportar. E não importa quantas vezes eu reveja as cenas do filme (parei de contar na trigésima vez), meus olhos sempre hão de ficar marejados, assim como os do protagonista do filme diante das belas imagens dos primórdios do cinema em preto e branco.



E acabado o papo, o tema saudosismo ficou na minha cabeça. Ouvi há pouco tempo alguém dizer que, com a idade, passamos a ter certa preguiça em conhecer novidades, e viramos saudosistas. Será???  Acho que não acontece comigo, pois estou sempre aberta a novidades. 

Na verdade, acho que o que acontece não é bem preguiça, é que há uma certa pobreza cultural geral, na era da internet, que passa por várias artes, em especial, a música (principalmente a nossa atual MPB, que anda mais para “MPoBreza”, com as letras pornográficas do funk e as melodias simplórias e rasteiras das chatérrimas sertanejas), mas o cinema (“Thank, God”) ainda tem conseguido preservar um lugar de destaque.

E nostálgica, além do cinema, me vi relembrando os velhos tempos, e logo me veio à lembrança a música “Rua ramalhete”, sucesso do compositor Tavito, mineiro que fazia parte do famoso “Clube da esquina” (movimento liderado por Milton Nascimento que surgiu na década de 60, numa época em que havia um fervilhar de novidades culturais em todo o mundo, inclusive no Brasil): “sem querer fui me lembrar... daquelas tardes... o amor anotado em bilhetes... do muro do Sacré-Couer... de uniforme e olhar de rapina... nossos bailes do clube da esquina... o som dos Beatles na vitrola...quanta saudade”.



Ah, os tempos de colégio... Como no “Cinema Paradiso”, os encontros da minha turma eram na grande sala de cinema; eu saía do colégio de manhã, ia para a aula de piano no Conservatório de Música à tarde, e depois... Ah, a magia do cinema. 

De uniforme, meias três quartos, sapato “boneca”, saia curta plissada e gravata escolar, nós levávamos a famosa pipoca “de vento” (quase sem) doce, comprada no baleiro da esquina, para a “guerra entre as tchurmas”, enquanto esperávamos o início da sessão, tal qual no belo filme italiano.

E assim que a cortina se abria e a luz se apagava, acabavam-se as “guerrinhas”, e todos os olhos, sem exceção, se voltavam para o telão, vidrados que ficávamos naquelas imagens enormes, estarrecedoras, e ali, quase sem fôlego, sem nem saber o que era ser cinéfila, nascia minha eterna paixão pelo cinema, tal quais as personagens do filme.

Só não virei cineasta (mas o sonho ainda não acabou, me aguardem, rsrs) como o menino Totó de “Cinema Paradiso”, e o meu blog passou então a ser a minha redenção e o meu portal para o mundo de sonhos e fantasias, através do cinema (e a bela música “João e Maria”, da nossa saudosa e verdadeira MPB, me leva mais facilmente para este mundo de magia).



Também o conhecido e premiadíssimo cineasta americano Martin Scorsese tem saudade dos velhos tempos; recentemente trouxe o cativante “Hugo” às telonas (no Brasil, “A invenção de Hugo Cabret”). Baseado numa história infantil em quadrinhos, “Hugo” nada mais é que uma bela homenagem aos primórdios do cinema. 

Scorsese mistura realidade à ficção, sob a forma de lembranças e fantasias do menino sonhador de nome Hugo, e homenageia o grande mágico francês dos anos 30, Georges Méliès, um dos precursores do cinema, ao relembrar sua extensa obra cinematográfica que foi quase totalmente destruída no período entre as duas grandes guerras mundiais.




E foi nessa onda de saudosismo que “reinaugurei” (ao vivo e na minha memória, porque não consigo curtir cinema em shopping) o novo Cine Art UFF (tal qual o “Nuovo Cinema Paradiso” depois da reforma) na minha querida Nickity (como Niterói, minha cidade adotiva, é carinhosamente apelidada), e escolhi, para tal, um filme, igualmente nostálgico, o belo e sensível “Boyhood” (no Brasil, com o subtítulo da infância a adolescência), do diretor Richard Linklater (o mesmo da ótima trilogia “Antes do amanhecer”, “Antes do pôr do sol” e “Antes da meia noite”).

O filme “Boyhood” foi rodado em exatos 12 anos, com o diretor acompanhando o protagonista/ator mirim (Ellar Coltrane) desde os 5 anos até os 17 anos de idade, e a música é outro protagonista que pontua temporalmente a passagem do tempo, a começar pela envolvente “Yellow”, da excelente banda inglesa Coldplay (e tem também Beatles, o compositor australiano Gotye com a famosa “Something that I used to know”, a animada “Get lucky” do Daft Punk e muito mais), que abre a primeira cena do filme, com o menino contemplando a paisagem e o céu e questionando o mundo ao seu redor, já nos mostrando, ainda em tão tenra idade, o quão sensível ele é.



Boyhood” vai da infância até a adolescência de um menino que se vê às voltas com o aprendizado que é a vida em si, de uma vida simples em família sem grandes dramas, com as alegrias comuns da infância (ao som de “Hero”, da banda americana de “indie rock” chamada “Family of the year”) e os pequenos dramas dos filhos de pais separados, um pai que demora a sair da própria adolescência (o mesmo ator da trilogia, Ethan Hawke) e uma mãe (a atriz Patricia Arquete) que vive se envolvendo com paixonites repentinas, frustrando os próprios filhos com um desfile de padastros improvisados (conheço alguns pais, exatamente assim, na vida real, que parecem que não tiveram adolescência e/ou não conseguem sair dela). 



E, passados doze anos, finalmente, ao ver chegar a maturidade, o sensível e questionador menino, agora um rapaz entrando na faculdade, se pergunta: “mas é só isso, a vida é só isso?”. E saí do cinema, com a música “Wish you were here” na cabeça (do Pink Floyd, que também faz parte da bela trilha sonora), com uma resposta no meu íntimo (recordando de mim mesma, com o mesmo questionamento, quando entrei na faculdade de medicina): “A vida é só essa droga mesmo, mas a vida é boa... a vida é boa, mas também é uma droga. Ou seja, vá entender essa vida e essa gente que somos todos nós, que teimamos em curtir essa droga de vida boa...”.



O filme me fez lembrar de outro, “Impulsividade”, a história do adolescente que, ao não se enquadrar em nenhuma “tribo”, anestesiado de tudo e de todos, se isola para, literalmente, “chupar o dedo” (daí o título original “Thumbsucker”), se negando a sair da adolescência para a vida adulta, já que os exemplos que tinha de maturidade, vinda de adultos à sua volta, eram falhos e questionáveis. 

Em “Impulsividade”, todos têm seus vícios (a mãe, papel de Tilda Swinton, o dentista, papel de Keanu Reeves, o pai, o irmão), vícios em drogas lícitas e ilícitas, em competições, em ganância, em busca incessante por sucesso, mas só o vício do então adolescente não é considerado digno, não é “normal” como os demais, ninguém é punido por seus vícios “normais”, só ele é visto como “portador de uma anomalia”, é o único “doente”. Mas para o jovem adolescente é apenas uma compulsão que, desde a infância, o acalma, portanto difícil de evitar e controlar.



Todos nós tivemos/temos/teremos vícios e manias que funcionam como válvula de escape para alívio de tensões, tipo roer unhas (essa é a minha), arrancar cutículas, balançar pernas, etc. No filme, “resolve-se” o problema do garoto com uma medicação, a ritalina, que o faz ficar hiperativo, e ele passa a experimentar de tudo, inclusive álcool e drogas e, então, ironicamente, passa a ser visto como um adolescente normal. 

A escritora gaúcha Lya Luft, no seu livro “Rio do meio” e ainda no também excelente “Perdas e ganhos”, já discutiu exaustivamente sobre esse tema, que é preciso passar conscientemente (e lucidamente) por essas tristezas para poder vencê-las, e não “fingir” que elas não existem, por meio de “drogas da felicidade”.

Assim, diante de uma inevitável tristeza, “curta-a” lucidamente, e vença-a, e saiba que você não será o único a passar por isso; esse é o tema desses dois excelentes filmes alternativos não hollywoodianos, “Thumbsucker” e “Boyhood”, reflexões profundas sobre nossas atitudes e nossos erros e acertos nas relações interpessoais.  

E, ao som de “Maninha”, de Chico Buarque de Holanda (de novo, saudosa da boa MPB), termino este texto com o grande poeta alemão Rainer Rilke, com o seu questionamento diante dos eternos desafios da vida: “Quem nunca esteve sentado, cheio de medo, diante da cortina do próprio coração?” 



Em tempo: dei de presente de Natal a um dos meus filhotes (o outro curte tecnologia, surf e paraquedismo), um jovem adulto antenado e de muito bom gosto, um disco de vinil dos Rollings Stones e uma vitrola, que ele curtiu de montão, provando que “saudade não tem idade e o que é bom dura para sempre”.


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