Milo Manara e a Sexualidade nos Quadrinhos



Nessa semana fãs e críticos de quadrinhos inflamaram-se uma vez mais, destilando sua revolta na internet contra uma decisão editorial controversa tomada pela Marvel Comics.

A história começou quando o portal especializado Comic Book Resources revelou algumas capas exclusivas a serem publicadas a partir de Novembro nas revistas mensais da editora. O material incluiu uma das capas variantes da nova revista Spider-Woman #1, série anunciada em Julho pela Marvel Comics durante o evento San Diego Comic-Con. A arte, reproduzida abaixo, é assinada pelo artista italiano Milo Manara.



Para os menos versados na Nona Arte, é válido lembrar que os trabalhos do desenhista geralmente giram em torno de mulheres elegantes, bonitas, expostas a cenários e enredos eróticos (para alguns, pornográficos), improváveis e fantásticos. Entre suas publicações mais famosas estão os contos Il Gioco, lançado em 1983 como parte da coleção Click!, sobre um dispositivo que deixava as mulheres incontrolavelmente excitadas, e Il Profumo dell'invisibile, lançado em 1986, sobre a invenção de uma tinta que tornava seu portador invisível. 



Muitos leitores tiveram problemas com a sexualização flagrante da super-heroína Mulher-Aranha, protagonista do novo título destinado a alcançar principalmente o público feminino. Não estou falando apenas de mulheres que se sentiram ofendidas, mas também de blogueiros populares como Rob Bricken do io9. “A personagem parece estar com pintura corporal, o que é inaceitável para uma indústria que ainda está tentando lembrar que mulheres existem e que também podem ler quadrinhos e não devem se sentir enojadas quando fazem isso. Quanto à posição em que ela está... Jesus Cristo”, escreveu Bricken.

Laura Sneddon, editora do blog ComiBookGrrrl, disse ao site do jornal britânico The Guardian que a capa não foi idealizada adequadamente. “As mulheres gostam de quadrinhos de super-heróis e inclusive de cenas picantes, mas essa capa explica por que as pessoas continuam pensando que quadrinhos são apenas para homens tarados”, afirmou. “Foi decepcionante a Marvel escolher esse tipo de artista para fazer uma versão da capa de uma heroína. O estilo de Milo Manara deve ter espaço, mas é preferível que isso aconteça em quadrinhos eróticos, não em histórias de super-heróis. Ou ao menos ele poderia ter reduzido a conotação sexual para esse público”, completou ela.

Desde o início da discussão online, muitos na indústria de quadrinhos e fora dela têm debatido as críticas, manifestando seu desagrado com a Marvel sobre o assunto. A internet fervilhou repercutindo a matéria. 



Eis que, na última sexta-feira (22), o próprio Manara foi entrevistado pelo periódico italiano Fumetto Logica para saber seus pensamentos a respeito da polêmica. 

"Lendo na internet, eu vi que as críticas têm dois motivos diferentes", cravou o desenhista. "Um deles é o lado excitante e erótico, o outro seria um erro anatômico. Agora, sobre a falta de perícia no desenho, não sei o que dizer. Vamos dizer que eu tento fazer o meu melhor a 40 anos. Ninguém é perfeito, e eu posso estar errado. Simplesmente sou um profissional, então eu faço o meu melhor".

E continuou. "Do lado erótico, no entanto, eu achei um pouco incrível. Há coisas muito mais importantes e sérias com as quais se preocupar. Os fatos em Ferguson, ou drama do Ebola. (É impressionante) que hajam pessoa que se preocupem com isso... A menos que exista, nos dias de hoje, uma hipersensibilidade a imagens eróticas mais ou menos como na discussão em curso nas crenças do Islã. Sabemos que a censura do corpo de uma mulher não deveria ser uma característica nossa, da própria Europa Ocidental. Isto também é muito surpreendente".


A principal crítica à capa variante da Mulher-Aranha não é nenhuma novidade nem no debate sobre quadrinhos, nem a respeito dos trabalhos do Manara. Trata-se da representação de uma mulher que é um "objeto" de desejo sexual, através de formas e poses provocantes e nada "naturais".

O que eu queria fazer era uma garota que, depois de escalar uma parede de um arranha-céu, está rastejando no telhado. Ela se encontra na borda, e sua perna direita ainda está fora do telhado. Assim, as críticas de anatomia que foram feitas, eu acho que estão erradas: não se trata de ter os dois joelhos no telhado. Uma perna ainda está em baixo, e a outra está sendo puxada para cima. Precisamente por esta razão, também, as costas estão arqueadas. Eu tentei fazer isso”. 

Não é minha culpa se as mulheres são assim", acrescentou o artista. "Eu faço apenas o design. Não sou eu que as fiz: é um autor muito mais ‘importante’, por exemplo, para aqueles que acreditam… Para os evolucionistas, inclusive eu, por outro lado, os corpos das mulheres tomaram esta forma ao longo dos milênios, a fim de evitar a extinção das espécies, de fato. Se as mulheres fossem feitas exatamente como os homens, com a mesma forma, eu acho que já teríamos sido extintos há muito tempo. Além disso, não considero uma das capas mais eróticas que eu fiz”.



Manara complementa lembrando que não inventou o erotismo nos quadrinhos. “Os super-heróis são assim: eles estão nus, todos pintados. Superman está nu e pintado de azul, o Homem-Aranha está nu pintado de azul e vermelho, e a Mulher-Aranha está nua pintada de vermelho. Mas são coisas que fazem parte do ‘truque’, por assim dizer, que os editores de super-heróis usam para criar essas formas de nudez. Não vejo nada de errado, e não há nudez real. Se nós virmos mais tarde, nas histórias, indo além da óbvia, são personagens cujos corpos estão à vista”.

Parece correto afirmar que, nessa situação, não há o que se dizer sobre culpa do artista. A Marvel sabia exatamente o que esperar da parceria, especialmente se considerarmos que não é nenhuma novidade. O erro dessa vez foi da editora, ao convidar um artista com fortes relações com o público masculino como Manara para desenvolver um trabalho voltado para o público feminino.



Além disso, a representação do corpo feminino na mídia é uma discussão muito maior. O mundo dos quadrinhos de super-heróis ainda é um universo fundamentalmente de homens. Da chamada Era de Ouro (1938) até os dias atuais, o protagonismo de personagens masculinos é gritante. Esta dominância do masculino é numérica (mais personagens homens do que mulheres) e qualitativa.

Mesmo a primeira super-heroína, a Mulher Maravilha,  nasceu a partir de uma ideia do que as mulheres deveriam ser. Seu criador foi o psicólogo americano William Marston, inventor do teste de pressão sanguínea sistólica, elemento fundamental no polígrafo ou “detector de mentiras”. Muito embora estivesse elaborando uma personagem poderosa, era fundamental para ele que Diana não deixasse de ser carinhosa, submissa e amante da paz. É comum falar que, por ser psicólogo, o autor usou elementos de fetiche relativamente comuns para criar a personagem. O “laço da verdade” seria portanto uma mistura da sua citada invenção com o fetiche do bondage (geralmente relacionado ao sadomasoquismo), e boa parte do sucesso da personagem estaria atrelado a elementos visuais como o espartilho vermelho e os trajes curtos em geral, que atrairiam público.



Os corpos femininos passaram gradativamente por um processo de aumento de tamanho com o passar dos anos. As poses nas quais as mulheres são retratadas em publicações mensais são claramente sexualizadas. Os uniformes reduzidos geralmente não tem qualquer sentido prático. Nos anos 90 era comum encontrarmos personagens femininas dando voadoras cujo enquadramento não poderia ter objetivo outro que deixar as personagens erotizadas e sexualizadas. Inclusive, não é incomum encontrar erros anatômicos provocados pela necessidade de sexualização.



As formas e os enquadramentos absurdos nos quais as personagens femininas são apresentadas acabaram gerando movimentos interessantes como o The Hawkeye Initiative, onde artistas independentes retratam o Gavião Arqueiro e outros heróis famosos reproduzindo poses comumente atribuídas a personagens femininas. Trabalhos como esse deixam claros a desigualdade na representação de gênero e a exploração comercial da sexualidade feminina.



Consideremos ainda que, se a sexualidade é mal trabalhada no caso das personagens femininas, para os personagens que não são heterossexuais a situação é ainda mais complicada. Personagens LGBT já foram proibidos pelo selo de censura Comics Code Authority, levando as editoras a alterá-los ou simplesmente ignorá-los por várias décadas. 

A complexidade do tema é tamanha que já foi inclusive material de estudos acadêmicos. A coletânea Questões de Sexualidade nas Histórias em Quadrinhos publicada em Junho desse ano pela editora da Universidade Federal de Alagoas, reúne pesquisas feitas por diversos investigadores de quatro regiões do Brasil e de Portugal, enfocando questões de sexualidade em diversos gêneros de histórias em quadrinhos. Para adquirir o material, basta clicar aqui.



Enfim. A culpa não é de Milo Manara, mas de conceitos pré-estabelecidos pela industria dominada pela visão masculina, que ainda busca meios de se adaptar à flexibilidade das regras (em verdade DIREITOS!) sociais com as quais vivemos e convivemos. E mudar é preciso. 

Mais do que nunca os super-heróis fazem parte do mundo real. Graças à universalização do conteúdo de histórias em quadrinhos por meio dos vários mega sucessos da indústria cinematográfica, como a trilogia Batman de Christopher Nolan e as produções da Marvel Studios, o universo de seres superpoderosos passou a gerar expectativas.  Passou a reforçar comportamentos. Produzir e reproduzir a realidade. É importante que sua influência seja instrumento de transformação em direção a um mundo mais igualitário e livre. 

Se os super-heróis não são mais "coisa de criança", é hora de assumir suas obrigações com o mundo real. Afinal, foram eles mesmos que nos ensinaram que com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.



Por Vinícius Moizinho

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