Enquanto o século XXI caminha a passos largos em direção a avanços tecnológicos impressionantes (e inimagináveis, décadas atrás), ao mesmo tempo parece que o ser humano, ao contrário, involui como “homo sapiens” capaz de livre arbítrio, e volta a ser primata retrocedendo a arcaicos conceitos bíblicos (que só trouxeram preconceitos e intolerâncias, principalmente religiosas, durante séculos), como aconteceu recentemente, de volta à cena, a ridícula “cura gay”, entre outros tantos retrocessos.
Como “adorável anarquista” e cinéfila, “já vi esse filme”. Fico perplexa ao perceber que passam-se os séculos e o ser humano continua egoísta e mesquinho, massacrando minorias em nome de um “Deus” malévolo e castrador, só por ser esta “tal minoria” diferente do “ser perfeito que Deus criou”.
Ora, se “Deus criou o ser humano à sua imagem”, Ele se esqueceu das “imperfeições” que criou? Pois foi a tal pretensa “soberania” da chamada “raça pura ariana” que levou a humanidade às atrocidades do Holocausto... E se Deus fosse gay ou negro? O filme brasileiro “O Auto da Compadecida” (bela e divertida história de autoria do nosso escritor, falecido recentemente, Ariano Suassuna) termina com a bela cena de “Deus disfarçado de negro e mendigo para testar a bondade dos homens”.
O patrulhamento em cima da individualidade alheia soa arcaico nos dias de hoje; cada um deveria ser livre para fazer suas próprias escolhas, desde que estas não afetassem o bem estar da sociedade como um todo, e assim cada um poderia optar pelo seu próprio bem estar, ou seja, quem quer ter um relacionamento hétero, homo, inter-racial, ou mesmo ser casto, virgem, ou até bi ou poligâmico, “whatever”, desde que essa escolha seja compartilhada e aceita (eu, particularmente, não aceito bigamia nas minhas relações), sem restrições, pelo seu parceiro, o único interessado em questão.
Ou seja, a questão sexual de cada um deve ser de interesse apenas do casal, seja ele hétero, homo e outros; o que me incomoda são as falsas declarações, por exemplo, de mulheres traídas que fingem não ligarem para tal fato, mas interiormente se sentem inferiorizadas e preteridas, e mesmo sofridas continuam a aceitar as traições dos seus homens.
A hipocrisia e patrulhamento em relação a sexualidade não é nenhuma novidade, nem mesmo no mundo dos gibis; por exemplo, sempre rolou a suspeita do envolvimento do Robin como a paixão secreta do Batman, e que este nunca “teve olhos” para a Mulher-Gato, mas sempre a questão foi camuflada, por conta da sociedade preconceituosa; e a dúvida não paira só sobre esses famosos heróis dos quadrinhos.
O que não dá para suportar é a hipocrisia dos tais enrustidos (por não admitirem “sair do armário” e ter que “prestar contas à sociedade”), como é mostrado num vídeo sobre “a sexualidade duvidosa dos personagens dos games”: os produtores desses jogos, às vezes, dão aos personagens um “ar de macho, fazendo-os xavecar (de leve) mulheres desavisadas”, numa atitude típica de enrustido que, quando começa a dar bandeira, tenta dar “uma de pegador só para disfarçar”, fazendo parecer que “não é do babado”.
O divertido vídeo (abaixo) dá um apanhado geral nas histórias camufladas dos personagens andróginos de games famosos, ao som de “Macho man” do Village People, de “I want to break free” do Queen, e de “Telma, eu não sou gay” (a versão hilária, do cantor Ney Matogrosso, para a música romântica brega “Tell me once again”, dos anos 70, do grupo “Light reflections”).
Há revelações hilárias no tal vídeo – estão lá a dinossaurinha rosa de sexo duvidoso, de nome Birdo, do “Mario Bros”, também o “metrossexual” Benimaru do “King of Fighters”, o (ou a?) doce Tails do “Sonic” e a personagem transexual de nome Poison, do game “Final fight” (“quem vê peitão, não vê pomo de Adão” – kkkkkk – por sinal muito bem escondido, estrategicamente, por uma coleira no pescoço).
A sociedade não tem que cobrar se o fulano transa ou não, e com quem quer ou não transar, isso só diz respeito aos envolvidos; existem casais (ele gay e ela lésbica) que desistiram de ir contra a intolerância familiar, e se uniram, em comum acordo, como um cala-boca para a sociedade, mas pelo menos a quatro paredes ninguém engana ninguém, é mais honesto assim.
Em contrapartida, outros tiram proveito do preconceito, como é o caso do ator e comediante Paulo Gustavo, que usa e abusa da sua condição de gay assumido, mostrando de maneira divertida a dificuldade dos que assumem a sua homossexualidade em público, na peça teatral “Minha Mãe é uma Peça”(agora também no cinema): abaixo, a hilária cena da “Dona Hermínia” (papel do próprio ator), avisando que “mãe faz vista grossa”, mas o filho vai “encalacrar na viadagem” (kkkkkk), e vai sofrer preconceito pois “sabe toda a coreografia daquela nega, a Cebion” (o ator desde a adolescência faz imitações da cantora negra Beyoncé).
E até os que querem viver sem sexo (os chamados “assexuais”) também não deveriam ser cobrados como se fossem de outro mundo. Os assexuados também reclamam, pois se sentem marginalizados, quase “extra-terrestres”, só por não curtirem sexo de jeito nenhum.
O belo e sensível romance “Na praia” (“On Chesil Beach”), que em breve chegará ao cinema (e que segundo o seu autor, o britânico Ian McEwan, é baseado numa história verídica), conta a história de uma mulher apaixonada que, nos anos 60 (pouco antes da revolução sexual), por algum motivo não bem explicado no livro, propõe ao amado manter-se casta, virgem, mesmo depois do casamento, e o amante ao invés de tentar compreendê-la e juntos tentarem solucionar a (possível ou não) causa do temor de sexo da protagonista (hoje a terapia pode buscar essas respostas, se é que necessariamente elas existam), ele a abandona e se arrepende disso pelo resto da vida.
Mas nem tudo está perdido, pois parece que a hipocrisia está sendo lentamente vencida. Como já existem personagens assumidamente homossexuais no mundo dos games, o cinema também vem colocando abaixo preconceitos e encarando com naturalidade qualquer forma de prazer e bem estar no âmbito sexual (“Qualquer Maneira de Amor Vale a Pena” - Milton Nascimento).
Mas, que fique claro que não se está, aqui, “pregando apologia ao sexo homossexual livre nas ruas”, até porque mesmo o sexo entre nós heterossexuais (que ainda somos maioria) também deveria ser algo privado, ninguém precisa ficar se agarrando em público para provar que é hétero e que tem vida sexual ativa. Mas quanto a hostilizar casais homossexuais de mãos dadas na rua é um atraso sem precedentes.
E para os que fazem cara de muxoxo, desdém ou nojo quanto a assistir cenas homoeróticas no cinema, a verdade é que até sexo entre héteros, se for mal filmado, também pode ser esdrúxulo, como acontece em muitos filmes pornôs entre héteros, muitos deles extremamente broxantes tal a má qualidade das cenas.
Tudo é uma questão do diretor saber levar a cena de sexo, podendo tornar a mesma envolvente ou broxante, seja ela entre héteros, homos, inter-raciais ou outros (como acontece também, por exemplo, em cenas de filmes de lutas de boxe, onde um talentoso cineasta pode conseguir transformar lutas horrendas e sangrantes em quase poesia).
O belo romance homossexual da película “O Segredo de Brokeback Mountain” é filmado poeticamente sem agressões visuais, com cenas ora sutis, ora fortes e reveladoras, mas sempre com uma delicadeza incapaz de nos confrontar, mérito do talentoso diretor chinês Ang Lee.
E o nosso recente “Flores Raras” (do brasileiro Bruno Barreto, com a atriz Glória Pires) que conta a história real da vida da poetisa americana Elizabeth Bishop, no Brasil, na década de 50, e seu relacionamento com uma arquiteta brasileira, mostra também cenas homoeróticas entre mulheres de muito bom gosto, sem agredir o telespectador.
Ator completo e sem preconceitos, Sean Penn está excelente e “assumidamente gay” em “Milk, a voz da igualdade”, sobre a história verídica do primeiro político gay eleito nos EUA nos anos 70, que foi assassinado por outro político (este casado, pai de família e com preconceitos religiosos enraizados, mas aparentemente enrustido e mal-resolvido), que acaba depois se suicidando.
E o cinema “indie” (de “independente”) e alternativo (fora do circuito hollywoodiano, sem preocupação com entretenimento e sim comprometido com idéias e posturas da sociedade), procura mostrar como é importante a tolerância e a compreensão da família (e da sociedade) em situações em que a sexualidade ainda está se formando, como no caso da adolescência, evitando-se assim preconceitos e maiores tragédias (como vícios em drogas e suicídio entre jovens perdidos socialmente e/ou sexualmente).
Assim cito como exemplo o belo filme francês, “Minha vida em cor de rosa”, do final dos anos 90 (a história do jovem, perdido sexualmente, que se sente e se veste como menina).
E o recente “Tomboy” de 2011 (a história da garota que se deixa passar por menino), também francês, sobre adolescentes perdidos em meio ao aflorar da sexualidade, e como sempre o belo cinema europeu não faz apologia nem condena o comportamento desses adolescentes, o que está em jogo é o caráter do personagem e não sua escolha sexual, e fica a critério do espectador tirar suas próprias conclusões e ensinamentos.
É decepcionante para mim, como “adorável anarquista”, saber que, em pleno século XXI, ainda estamos nos preocupando com a cor das pessoas e a opção sexual delas, e em ter que parecer feliz ao invés de procurar realmente ser feliz, e esquecemos que o que deveria realmente importar é o caráter do ser humano, o altruísmo e a alteridade das pessoas (que independem da raça e das escolhas sexuais delas), mas essas qualidades parecem pouco importar num mundo em que “é o Facebook quem dita a moda e é a vitrine da futilidade e da mediocridade do ser humano”. Lamentável.
Postado por *Rosemery Nunes ("Adorável anarquista")
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