Especialmente no Brasil, a partir
do trabalho pioneiro da Editora Brasiliense e mais recentemente pela Editora
L&PM, houve um ressurgimento mais democrático da literatura/cultura beat.
Digo mais democrático porque já desde a década de 1960, vide Roberto Piva &
Cia., a geração de Kerouac/Ginsberg/Burroughs’n’others já exercia influência
sobre escritores que buscavam uma literatura mais livre de censuras e arreios
formais. Mas isso incluía quase necessariamente o conhecimento da língua
inglesa e o acesso a livros (e a informações) vindos de fora. E, para nossa
alegria, (onde foi que eu ouvi essa frase mesmo?) quando On the road, o afamado
livro de Jack Kerouac, finalmente saiu das páginas para as telas de cinema seu
diretor foi um brasileiro: Walter Salles, do (belo mas sentimental) Central do Brasil (1998) e do
(paisagístico e entediante) Diários de
motocicleta (2004). O perigo de a geração beat acabar transformada numa moda
fácil, no lenitivo para uma geração profundamente conformista, era grande, não
tanto no sentido da emulação da narrativa e da confusa ideologia dos autores se
tornar um suco pop-hedonista, mas (o que teria o mesmo resultado) na
idealização romântica e heróica da coisa toda. O risco oposto era Walter Salles fazer um filme
apenas para iniciados, ou seja, apenas para leitores fanáticos que iriam
cotejar cada cena do filme com cada passagem do livro (que para alguns radicais, e eles são sempre perigosos, se tornou uma espécie de Bíblia ao ar livre). On the road já tinha
passado por vários projetos de filmagem, e é bem conhecido o fato de Francis
Ford Coppola ter deixado o projeto da adaptação engavetado por décadas. Coppola
acabou se tornando produtor do filme, e desde Cannes afirma que o resultado
final em muito lhe agradou. Poderiam dizer: o produtor não criticaria o próprio
filme produzido, mas – em verdade – o resultado final é surpreendente. Os
personagens não são idealizados, a trama é bastante fiel ao original do romance
– que, no final, também é um pouco a história de se contar uma história – mas
os pontos de vista são mais amplos – o sofrimento das mulheres de tipos tão
boêmios e sem limites, que acaba um pouco eclipsado não apenas no romance de
Kerouac, mas em boa parte da literatura beat, é demonstrado de maneira bem
lúcida. A diversão inconsequente aparentemente sem limites também é mostrada em
seu reverso (mas livre de julgamentos moralistas) como suicídio a longo prazo e
destruição cega de tudo que está ao redor. O leitor/releitor do romance pode
curtir as referências à vontade, mas aquele que não leu o livro não se perde no
filme. Para quem não viu o filme e não leu o livro (o release, enfim!): o romance
se baseia na própria vida do autor, nas suas viagens através dos Estados Unidos
e sobretudo na sua amizade com o escritor marginal em formação e sedutor épico
Neil Cassady. Uma primeira versão do romance, recentemente reeditada e
traduzida, dá aos personagens os seus mesmos nomes originais, mas a versão
canônica do romance troca seus nomes e altera algumas passagens por questões de
censura e preservação da imagem: Kerouac, o escritor, se torna o narrador
personagem Sal Paradise, e Cassady se torna Dean Moriarty. Ginsberg se torna
Carlo Marx e Burrougs, Old Bull Lee. No filme: Sam Riley (que viveu o papel de
Ian Curtis, vocalista do Joy Division, no filme Control) como Sal Paradise, Garrett Hedlund (de Tron Legacy) (ambos se encaixando
perfeitamente nos papéis), Kristen Stewart (da saga Crepúsculo) surpreendentemente superou sua afamada falta de
expressividade ao fazer um papel diametralmente oposto ao que lhe deu a fama ao
encarnar Marylou, no romance a amante sem limites à altura de Dean. Destaque
especial para Viggo Mortensen (O Senhor
dos Anéis), que, vivendo Old Bull Lee, emulou perfeitamente o escritor real
em que se baseia o personagem: sobretudo a partir do sotaque arrastado do meio
oeste estadunidense. Pequena decepção: Tom Sturridge, no papel de Carlo Marx, poeta
homossexual apaixonado sem esperanças por Dean (o que aconteceu verdadeiramente
entre Ginsberg e Cassady), acaba excessivamente resumido ao seu caso de amor
impossível, e acaba predominando exageradamente o ciúme na relação (no caso é
difícil julgar propriamente o ator, já que o próprio papel acabou bastante
limitado a isso). (Essa relação é
melhor exposta em Uivo (2010), dir.
Rob Epstein, Jeffrey Friedman, com James Franco muito bem colocado no papel principal.)
Mas isso não estraga o filme. Pelo contrário, On the road é muito provavelmente o melhor filme de Salles. Chama
atenção sobretudo uma coisa: Salles não dá uma resposta definitiva para a
relação Sal/Jack–Dean/Neil. Cassady, que teve apenas um livro publicado em
vida, o Primeiro terço, apesar de humildemente pedir a Kerouac que lhe ensine a ser um escritor,
acaba se tornando a fonte não apenas de On
the road, mas de todo o imaginário beat, sobretudo no que tange à obra do
próprio Kerouac. Quem na verdade vampirizou quem (e quem conhece bem a produção
literária/autobiográfica de ambos entende a pertinência da pergunta)? Salles
percebeu sutilmente que essa resposta ele, assim com os leitores da beat, não podia
dar definiticamente. E talvez nem os envolvidos diretos soubessem dizer isso ao
certo. Mas quem chegar a ir ao Céu, onde todos esses livros foram originalmente publicados, segundo o poema de Ginsberg, talvez consiga uma resposta…
Ao meu modo de ver, o filme On the Road, de Walter Salles, está na árdua atribuição de agradar ao senso estético – moral – conceitual comum cristalizado na consciência social – cada vez menos analítica; cada vez mais enclausurada nos estereótipos mantrânicos hipermídia manifestos na morbidez do Mainstream… Sem experimentação – Are You Experienced? – como diria Jimi Hendrix, sem assentar alguma vivência real na estrada de On the Road, torna – se humanamente impossível processar a plenitude da obra literária mais emblemática e representativa da Contracultura, catalisando definitivamente o movimento de libertação da América Pós – Guerra nascida em meio às dúvidas, assombros e anseios da geração quase perdida de Jack Kerouac… http://ritual66.blogspot.com.br/2012/07/on-road_17.html
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